Uma faixa, um sinal, milhares de vidas salvas
A cena é comum para o brasiliense nos dias de hoje: alguém se aproxima de uma faixa de pedestre, levanta a mão, todos os veículos param, e aguardam a pessoa atravessar para o outro lado em segurança.
Mas, há 27 anos, esse comportamento era impensável. Nos anos 90, o trânsito da capital federal figurava entre os mais violentos do mundo. Brasília, a capital da esperança, fora concebida para os carros. E os motoristas resistiam em abrir mão da fluidez para salvar vidas. Aceleravam seus imponentes possantes motorizados pelas vias largas e manchavam, de sangue, o plano urbanístico desenhado pelo arquiteto Lúcio Costa.
De acordo com o então Departamento Nacional de Trânsito, hoje Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), em 1995, o Distrito Federal tinha o trânsito que mais matava no país pelo excesso de velocidade. De janeiro a junho de 1996, 422 pessoas perderam a vida no tráfego em Brasília. E, de cada três pessoas que morriam em Brasília, uma era vítima do trânsito.
A mesma cruz que inspirou o entroncamento entre os eixos Rodoviário e Monumental pelos traços do urbanista e representava a esperança em um futuro promissor, passou a significar sofrimento e morte. A população, com medo, reagiu e exigiu providências do poder público para reduzir o número de óbitos. Ainda em 1996, milhares de brasilienses ocuparam o Eixão, em passeata, reivindicando ações por parte do governo local.
O então governador, Cristovam Buarque, respondeu de imediato ao instalar radares eletrônicos de velocidade, apelidados de “pardais” e se aliou à mídia para desenvolver propagandas educativas. Foi criada, então, por decreto, a Campanha Paz no Trânsito.
Com o intuito de interromper a escalada de mortes, o gesto de levantar a mão antes de atravessar a faixa de pedestre recebeu o nome de “sinal de vida”.
A Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), no entanto, já planejava, havia dois anos, colocar em prática o respeito a faixa de pedestre, que já era previsto na legislação de trânsito. Mas a iniciativa era rechaçada pelo governo que temia o provável aumento de atropelamentos na fase de implantação. A reprovação da população também era um obstáculo.
Em viagem à Espanha, o coronel da PMDF Renato Azevedo, falecido em 2012, e major à época, reparou que os espanhóis respeitavam muito a faixa de pedestre e, para a sua surpresa, os brasileiros que moravam por lá ou que estavam de passagem, também seguiam a lei.
“O respeito à faixa de pedestre não nasceu no decreto do governo que regulamentou a Campanha Paz no Trânsito. Por que, enquanto estava acontecendo a campanha aqui no DF, eu estava na Espanha, onde tive a ideia de fazer valer a lei no Brasil que já era prevista nas normas de trânsito”, declarou, Renato Azevedo, em entrevista ao jornalista Hércules Silva no documentário Paz no Trânsito. “Se o brasileiro que dirige na Espanha para na faixa, por que ele não a respeita no Brasil”, completou.
Ao voltar o Brasil, Azevedo criou o Núcleo de Policiamento de Trânsito (NPTran), na 307 Sul, que foi o embrião do que hoje é o Batalhão de Policiamento de Trânsito (BPTran) que, em conjunto ao Batalhão de Policiamento Rodoviário (BPRv), formam o Comando de Policiamento de Trânsito (CPTran). Atento ao que estava acontecendo, o então comandante do trânsito no DF percebeu que a redução da velocidade média das vias urbanas, que era altíssima, e a instalação dos pardais e das barreiras eletrônicas, criavam o momento ideal para implementar sua ideia.
“Depois que ele voltou da Europa, reunia os oficiais e aspirantes no NPTran para debater o planejamento para implementar o respeito à faixa de pedestre e aproveitava todas as ideias apresentadas. O coronel Azevedo também se reunia com jornalistas e com o então diretor-geral do Detran-DF, Luís Miura (in memorian) para pedir o apoio de todos”, recorda o coronel Flávio Luiz, hoje na reserva remunerada, mas que era tenente na época em que trabalhou na logística do núcleo de trânsito.
Flávio conta ainda que, apesar dos altos índices de mortes, o coronel Azevedo encontrou muita resistência para convencer o governo. “Mas o coronel tinha fortes argumentos, sobretudo a segurança e a proteção à vida dos pedestres. Ele não desistia e lutou até conseguir”, diz. Outro momento que guarda na lembrança, foi o dia em que ouviu do próprio comandante que tinha lançado “extra-oficialmente”, em uma entrevista, o projeto da faixa de pedestre.
“Ele chegou da entrevista entusiasmado e disse com o sotaque gaúcho:
‘Tchê, hoje eu dei o chute inicial para acontecer o que já devia ter acontecido há muito tempo. A partir de agora não tem mais volta. Eu já dei entrevista e disse que quem não se moldar vai ter que mudar. A legislação dá prioridade ao pedestre, mesmo fora da faixa, e vamos aplicar a lei’”.
Coronel Azevedo
O sargento Simonal, ordenança entre 1995 e 2002, era soldado e motorista quando acompanhou todos os passos do coronel. “Quando ele montou o núcleo (NPTran), já falava sobre o respeito à faixa de pedestre. Eu não acreditava. E poucos policiais acreditavam. Mas sabíamos que ele era bem articulado e corria atrás do que acreditava”, disse.
Segundo o policial, que hoje mora no Rio de Janeiro, Renato Azevedo não era um oficial apenas de planejar, mas de ação. “Ele ia para a rua e conversava com os motoristas, com a população e com os policiais. Sempre acreditou que daria certo, mesmo quando ninguém acreditava. E isso é mérito dele, mudar a cultura da população”, acrescenta.
O coronel Flávio Luiz que, em 2021, também comandou o CPTran, descreve o planejamento elaborado por Azevedo para implementar o respeito à faixa de pedestre. Segundo ele, três fases eram previstas:
“Colocamos os policiais nesses locais onde as multas eram transformadas em advertência educativa. Mais ou menos dois meses depois, as multas passaram a ser aplicadas normalmente em caso de infração”. Segundo Flávio Luiz, não demorou muito para os policiais notarem que os motoristas já ligavam o pisca-alerta ao pararem nas faixas e a quantidade de multas reduziram drasticamente.
O sargento Luciano que serviu como soldado no NPTran, em 1996, lembra que a orientação do comandante Azevedo era começar o processo de educação dos motoristas com a intervenção policial nas faixas. “Como não havia a cultura ainda, ele temia acontecer alguns atropelamentos no início. A estratégia, então, era primeiro mostrar o policial na faixa interrompendo o fluxo dos carros para a passagem do pedestre até que os motoristas acostumassem com o novo comportamento”.
De acordo com o coronel Flávio Luiz, o comandante Azevedo colocava a faixa como prioridade e empregou todo o efetivo do batalhão para aplicar a lei. “Se houvesse escassez de efetivo não poderia faltar para o programa piloto das faixas. Isso era imperativo”, conta. Tudo era monitorado de perto. No início, os policiais percebiam que as faixas onde não havia policiais, os motoristas não davam preferência ao pedestre. O coronel Azevedo, então, peregrinava pelas redações dos órgãos de imprensa pedindo que produzissem reportagens com pedestres fazendo o sinal de vida e que os condutores respeitassem a faixa. Ele também criou o teatro Rodovia para fortalecer o trabalho de educação em escolas e em outros eventos.
“Foi assim até começarmos a reparar que, na ausência dos policiais, os carros começavam a parar. Estávamos sempre a par do que acontecia pelas inúmeras reuniões. E ele falou que estava percebendo o respeito aumentando e determinou que os policiais ficassem mais afastados para observarem e não aparecerem. Ele era muito estratégico”, diz Flávio.
Moradora da 107 Sul desde a época da implantação das faixas de pedestres, a aposentada Heloísa Helena Carvalho, o respeito à faixa mudou a cultura do brasiliense para melhor. “Foi melhor coisa do mundo. Sempre funcionou muito bem. Ainda mais para nós que somos idosos”.
Detalhes
O hoje sargento Brito lembra que, quando era soldado no NPTran, era muito comum encontrar com o comandante Azevedo na rua. “Ele era onipresente. Uma hora ele estava no rádio passando orientações. De repente, ouvíamos um apito e era ele, pessoalmente, interrompendo o trânsito para os pedestres atravessarem a rua”. O oficial, segundo Brito, ainda aproveitava o momento para passar algumas instruções aos comandados.
Flávio Luiz concorda: “ele gostava de dar exemplo. Havia tablados de mais ou menos 40 cm no centro de um cruzamento ou próximo à uma faixa de pedestre para dar mais visibilidade ao policial na via. E o próprio coronel Azevedo fazia demonstrações. Os gestos deveriam ser perfeitos”. De acordo com o militar, em eventos ou em operações, o posicionamento dos cones também deveria ser perfeito. “Quero os cones lavados, limpos e polidos e o refletivo da PMDF deve estar voltado para o condutor”, ele determinava.
Todos os entrevistados para essa reportagem mencionaram que o coronel Azevedo era um homem justo e um oficial que, apesar de defender a tropa, era também muito exigente. Em uma ocasião, na época das faixas de pedestres, ele fez uma blitz “simbólica” no próprio batalhão para checar a situação dos carros particulares dos policiais e também o estado de conservação das viaturas. “Carros rebaixados, com pneus carecas, com farol queimado e outros defeitos, eram criticados. Até as viaturas passaram pelo pente fino do coronel. Ele dizia estávamos vivendo uma nova era e que deveríamos dar o exemplo para cobrar da população. E deu prazo para todos se adequarem à lei. Era um líder nato”.
O subtenente Wagner acrescenta que aprendeu muito com o coronel Azevedo e que o BPTran foi um “divisor de águas” no DF. “As ações educativas nas escolas são uma forte política e muito relevante para formar as novas gerações de motoristas conscientes e, assim, mantermos a tradição do respeito à faixa de pedestre”.
Homem de ação
Para a major Adriana Lira, hoje na reserva remunerada, e que foi ajudante de ordens do coronel Renato Azevedo, quando ele foi comandante-geral da PMDF entre 2004 e 2006. Segundo a oficial, ele se orgulhava muito do respeito à faixa de pedestre e foi um homem de muitos legados.
“Ele sempre dizia que o trabalho foi feito por todos os policiais envolvidos e também do Detran e do próprio governo local”. Mas, de acordo com a ela, o comandante emplacou diversos outros projetos. Tanto para a sociedade como para a PMDF.
Uma das ações que o coronel Azevedo atuou também foi na conscientização do uso do cinto de segurança quando ele passou a ser obrigatório. “Ele foi um homem de muitos legados. Administrava vários projetos e ia até o fim para implantá-los. O coronel se importava muito com a saúde física e mental da tropa e criou vários benefícios internamente. Ele implantou o Serviço Voluntário Gratificado internamente, realinhamento de quadro com promoções históricas e realizou um feito muito importante que foi a elaboração da portaria da policial gestante”.
Segundo a oficial, não existia um dispositivo legal na época que amparasse a policial durante a gestação e na fase de amamentação. Afinal, a junta médica precisava de uma norma para dispensar a policial do serviço operacional e a remanejasse para o trabalho administrativo a fim de preservar a saúde dela e a do bebê. “Assim que ele soube determinou a criação de uma comissão para elaborar o documento. Em nossas pesquisas, descobrimos que nenhuma outra corporação do Brasil e nem mesmo as Forças Armadas contavam com algo parecido. Seguimos em frente, por determinação dele, e fomos a pioneiros nesse sentido”, destaca.
Para o atual comandante do CPTran/PMDF, coronel Edvã Sousa, o respeito à faixa de pedestre só se tornou símbolo de Brasília e referência para o resto do país, graças ao empenho e competência do coronel Renato Azevedo.
“Até hoje nos inspiramos no trabalho do nosso patrono, o coronel Azevedo, no sentido de investirmos nossos esforços na educação nas escolas e na parceria com o Detran, DER e demais forças da Segurança Pública para mantermos o legado dele em relação ao respeito à faixa de pedestre”, diz.
O oficial acrescenta ainda que o objetivo principal do CPTran é preservar vidas.
“O pedestre é o ator principal do trânsito e não o carro. O maior deve proteger o menor. Nunca mediremos esforços para proteger a faixa, o sinal de vida e o pedestre. A ação educativa da faixa mudou o comportamento do brasiliense porque houve uma conscientização coletiva. E a obrigação dos órgãos de trânsito é manter essa cultura viva”.
Os reflexos da implementação do respeito à faixa de pedestre podem ser percebidos até os dias de hoje.
Desde 1 de abril de 1997, data da inauguração da primeira faixa, a redução dos acidentes fatais e de mortos e feridos no Distrito Federal despencaram. Levantamento do Detran-DF aponta que, em 2023, houve redução no número de acidentes com mortes. Em relação aos pedestres, os dados gerais indicam que houve uma redução de 7,7% no número de óbitos.
No ano passado, ocorreram 84 mortes. Em relação aos atropelamentos fatais em faixas de pedestres, houve queda de 66% no número de mortes de pedestres. Em 2023, foram dois pedestres mortos, no ano anterior, foram registrados seis óbitos.
Filha do homem que salvou vidas ao mudar a cultura do brasiliense pela educação, a servidora pública Renata Azevedo, considera a faixa de pedestre como um “patrimônio nacional” e sente-se orgulhosa pelo legado deixado pelo pai.
“A faixa de pedestre entrou na rotina do cidadão brasiliense de tal maneira que já passou a fazer parte da própria identidade e já temos, hoje, uma geração nascida nesse contexto. Não há uma única vez que eu atravesse a faixa que não lembre do meu pai. É quase como ver uma fotografia”, conta.
Segundo ela, o pai costumava dizer que o trânsito é um ambiente em que o ser humano revela sua essência e caráter. “Se a gente quer a paz no mundo, precisamos mostrar isso no trânsito também. O trânsito revela o nível de compreensão e de respeito que a gente tem pelo próximo. Então eu sempre me avalio muito. Será que eu estou levando para o trânsito a paz que desejo para o mundo? E você?”, indaga.
Com informações do Jornal de Brasília
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