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Casos de injúria racial no DF dobraram nos últimos 10 anos

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“Chamaram a polícia e precisei abrir minha bolsa para provar que não havia roubado nada.” O relato é da fisioterapeuta Camylla Alvino, 34 anos, que foi seguida por seguranças e acusada de furtar uma roupa em um shopping da área nobre de Brasília, no fim de 2023. O episódio, compartilhado em uma rede social, resultou em manifestações de solidariedade e sentimento de revolta. Assim como ela, outros seguidores postaram casos de discriminação.

Não por acaso, em 2023, foram registradas 722 ocorrências de injúria racial no Distrito Federal, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP/DF). O quantitativo, o maior dos últimos 10 anos, mais que dobrou em comparação a 2014, quando foram registradas 299 ocorrências. No primeiro semestre deste ano, totalizou-se 344 casos.

A injúria racial consiste no uso de palavras ou gestos depreciativos dirigidos a uma ou mais pessoas determinadas, com a finalidade de ofender a honra da vítima, seja por sua raça, cor, etnia, religião, origem, orientação religiosa, seja por sua identidade de gênero ou orientação sexual. Em 2023, a Lei 14.532 equiparou os crimes de racismo e injúria racial, tornando esta última pena mais severa, inafiançável e imprescritível. 

Além de as pessoas estarem denunciando mais, a mudança na lei permitiu que houvesse menor impunidade. Mesmo assim, os casos ainda são subnotificados, como alerta Beethoven Andrade, advogado e presidente da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/DF). “Considerando que essas situações ocorreram majoritariamente em ambientes de trabalho, as vítimas sentem medo de perder o emprego, sofrer perseguições ou serem prejudicadas”, explicou. 

Agressão

“Todas as vezes que me recordo desse episódio, sofro e me sinto incapaz”, contou Camylla, com a voz trêmula. Na ocasião da agressão, atendentes de uma loja de artigos esportivos a acusaram de furtar tops para treino. “Disseram que foram encontrados alguns lacres rompidos no provador em que eu havia entrado. Abri minha bolsa e mostrei que não havia roupa alguma comigo. Mesmo assim, chamaram a polícia.” 

A fisioterapeuta questionou a gerente da loja se todos os clientes que haviam passado pelo provador tinham sido seguidos, como ela. “Responderam que não. Então, tive certeza de que se tratava de um caso de racismo”, lamentou. Camylla denunciou o estabelecimento e, após ter se manifestado nas redes, recebeu do shopping uma nota com um breve pedido de desculpas. O processo está em andamento, no entanto, a ferida da discriminação não cessou.

“A gente sofre racismo todos os dias, em olhares, falas e atitudes. Mas ser acusada de um crime que não cometi devido à cor da minha pele é muito humilhante, faz eu me sentir incapaz. Mesmo assim, não abaixo a minha cabeça, porque sei que outras pessoas precisam dessa coragem para conseguir vencer essas barreiras”, destacou. 

Com Luana (nome fictício), 23, a agressão se deu no hospital onde trabalha no atendimento ao público. Ela, que tem o cabelo crespo, estava acompanhada de outro funcionário, branco e de fios encaracolados. Com a chegada de uma paciente, a jovem a escutou interagindo com seu colega. “Ela elogiou a aparência dele e disse ‘é lindo seu cabelo, diferente daquelas vassouras, mais escuras e com cheiro forte de natureza’, enquanto insinuou, com as mãos, referir-se a um black power, como o que tenho”, detalhou.  

Em choque e acreditando que a mulher não a havia visto, Luana não conseguiu reagir. “Me senti impotente.” Depois, quando decidiu relatar o ocorrido aos superiores, não teve resposta. “Sabemos que isso não acontece uma única vez. Inclusive, é difícil encontrar pessoas pretas que não tenham vivenciado algo do tipo. Ao mesmo tempo, acredito que compartilhar essas histórias dá ainda mais força para nossa luta”, afirmou. 

Conscientização

O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) possui o Núcleo de Enfrentamento à Discriminação (NED), que atua de forma especializada nos crimes raciais encaminhados pelos promotores de Justiça. A finalidade do grupo é garantir maior rigor no tratamento de delitos dessa espécie, não aplicando, por exemplo, a suspensão condicional do processo aos seus autores, visto que isso torna insuficiente a prevenção ao crime.

Além disso, com o objetivo de conscientizar autores de crimes raciais e evitar a reincidência, o NED/MPDFT promove semestralmente um curso, proveniente do projeto Oxalá, para essas pessoas, após encaminhamento do Judiciário. “Recentemente, o MPDFT organizou uma audiência pública para tratar dos casos de racismo ocorridos em escolas do DF, com o fim de ouvir a população e efetuar a cobrança de políticas públicas específicas”, disse o órgão em nota. 

Inaugurada em 2016, a Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa, ou por Orientação Sexual, ou Contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin) é um dos locais de acolhimento às vítimas de injúria racial. “Na Decrin, elas (as vítimas) terão escuta ativa e não serão julgadas. Todos os profissionais passaram por letramento racial. Portanto, há todo um cuidado em não revitimizar essas pessoas”, disse Ângela Santos, delegada-chefe da Decrin.

Sobre esse tipo de crime, Ângela comenta: “Não se trata de uma ocorrência isolada, visto que, antes da denúncia, essa pessoa já passou por inúmeras situações de discriminação, do bullying, na escola, a constrangimentos no dia a dia. Daí a importância de denunciar e não permitir que esses agressores saem impunes”, completou.

Preconceito que adoece

Da enorme quantidade de pessoas negras encarceradas à hiperssexualização da mulher negra, constata-se que as agressões racistas são cotidianas. Abordagens mais recentes que estudam os efeitos dessas vivências têm utilizado a classificação de estresse pós-traumático de base racial para se referir aos impactos da violência. Sintomas dessa condição incluem a sensação de impotência, irritabilidade e a percepção contínua de perigo, sentimentos experimentados coletivamente em vista da sua frequência e do fato de vivermos em um país de construção colonial e racista. 

Ansiedade crônica, depressão e autoestima e autoeficácia diminuídas estão entre os impactos psicológicos resultantes da discriminação. Efeitos físicos incluem pressão alta, risco maior de doenças cardíacas e diabetes. Em relação aos aspectos sociais, nota-se a dificuldade de acesso à moradia, a oportunidades econômicas, ao estudo e à participação social. Todos esses elementos, que vão se sobrepondo, prejudicam drasticamente a saúde da população negra brasileira. Sem processos intencionais e conscientes de combate ao racismo, a tendência é que isso se perpetue. 

Três perguntas para

Beethoven Andrade, advogado, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB/DF

O número de ocorrências de injúria racial no DF é bastante expressivo. Em 2023, foram 722 casos, o maior quantitativo dos últimos cinco anos. A que se deve esse aumento? Mesmo assim, existe subnotificação?

A crescente se deve à modificação na Lei do Crime Racial (7.716/1989) e no Código Penal, sancionada ano passado, que equiparou os crimes de racismo e injúria racial. Agora, toda injúria qualificada é considerada racismo. Foi uma atualização necessária, visto que, antes, a pena aparentemente não resultava em consequências graves ao acusado. Com a equiparação dos crimes, o tempo de reclusão pode variar de dois a cinco anos, além de multa. De toda forma, a subnotificação ainda existe por diferentes razões.

Em quais contextos mais ocorrem esses casos e de que forma isso impacta na subnotificação?

Casos de injúria racial ocorreram majoritariamente em ambientes de trabalho. Por medo de perder o emprego, ou de sofrer algum tipo de perseguição e ser prejudicada, a vítima não denuncia. Quando as pessoas levam a denúncia à frente, significa que já há um estado de esgotamento muito grande. Também temos observado uma crescente em ambientes escolares, cuja discriminação quase sempre é acompanhada de conflitos sociais de classe. Por fim, essas agressões tendem a ocorrer em locais comerciais, como shoppings e restaurantes. Nessas situações, há relatos de vítimas que não foram atendidas ou sofreram perseguição. Vale lembrar que existem casos nos quais a pessoa atingida não reconhece determinadas atitudes como discriminação.

A vítima de injúria racial precisa comprovar que sofreu o crime no momento da denúncia? Se sim, de que forma isso pode ser feito? Testemunhas também podem denunciar?

É sempre necessário e importante que se tenha o máximo de provas dessas agressões. Algumas opções são filmar a situação ou gravar alguma conversa. Em ambientes virtuais, deve-se tirar print e guardar o registro. Qualquer pessoa pode fazer a denúncia, inclusive testemunhas. Em contextos nos quais há risco de vida, deve-se imediatamente pedir o acompanhamento da Polícia Militar. Entre os canais de denúncia disponíveis estão o 190, da PM, a Delegacia de Polícia Eletrônica e o Disque Denúncia (181). A denúncia pode ser anônima.

Com informações do Correio Braziliense

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