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Depois do desânimo: indignação, pulso e ação” (I)

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Talvez todas as manhãs dos democratas convictos possam resultar abaladas desde a segunda metade de 2015, recebendo desde então as reverberações do nefasto do golpe de Estado alimentado pela altissonante marcha da insensatez que vem alargando espaços. Ainda despertamos sob o eco dos ruídos das manifestações de rua somados aos urros guturais de primitivos engravatados que sepultaram as esperanças da nação em uma triste tarde de domingo, arquivando as esperanças que 54 milhões de votantes haviam depositado no último governo brasileiro legitimado pelas urnas. As ruas ganharam movimentos decorados com camisetas verde-amarelas de uma conhecida empresa em que a corrupção reina há décadas. A patota entoava cânticos de orgulho patriótico, repleta de suposta indignação sob palavras e chavões mil, tal como a aplicação do “padrão FIFA” para todas as dimensões da organização social, escolas, saúde, administração pública, etc. Hoje, o verde-amarelo esmaeceu, descoloriu, sumiu de qualquer horizonte visível.

Homens e mulheres que brandiram radiante indignação contra tantos males nacionais supostamente atribuíveis ao Governo popular legítimo logo experimentaram as emoções de um insano triplo twist carpado político sem rede à mil metros de altura, cujo equivalente político é derrubar um Governo legítimo para instaurar uma conhecida quadrilha no poder. Os desbotados verde-amarelos liderados por um pato amarelo hoje assumem permitir que o seu futuro seja roubado por notórios quadrilheiros que entregam nada menos do que poços de petróleo do pré-sal no valor de R$1 trilhão, por pública obra e engenhosa graça do já muito conhecido José Serra. Há enorme clareza no fato de que nunca esteve em causa e nem se tratou de combater a corrupção ou gerar recursos econômicos para o caixa do Governo, de adotar práticas para melhorar as contas públicas ou sofisticar a capacidade de investimento do Estado, senão, isto sim, que o objetivo foi sempre o de transferir bens públicos para a exploração altamente lucrativa da iniciativa privada, sempre empenhada na busca de grandes oportunidades. Um Governo popular não concordaria com este projeto, não poderia, e alijá-lo do caminho era preciso.

Já não se ouvem os brados heroicos protestando pelo “padrão FIFA” nos serviços públicos, mas sim o silêncio e o cru apequenamento ante a própria extinção do serviço público levada a termo pelos indesejáveis inquilinos do poder. Agora, portanto, a questão não é a qualidade da oferta do serviço público, mas a sua virtual indisponibilidade. Onde estão as hordas verde-amarelas capazes de apresentar tantas demandas por serviços públicos somadas a rudes críticas e cultivo ao ódio e que hoje se calam?

Já não há protestos nas ruas desertas contra a corrupção, como se todas as imagens (homens correndo com malas de dinheiro nas ruas, transportadores de dinheiro a pedido de ex-candidatos à Presidência, etc.), gravações (áudios com a viva voz de Temer em pleno exercício da Presidência) e provas materiais (malas de dinheiro com digital dos envolvidos) fossem coisas menores. Este mar de sólidas provas é tratado como se estivéssemos na presença de longínquos e incertos indícios, tais como aqueles que o mainstream midiático-oligárquico costuma manipular contra as lideranças populares que ousam dizer não aos seus mais profundos interesses. Aqui e agora já não há pulso ou rubor, nem muito menos a sanha enfurecida, pois os indignados de ontem parecem não diferenciar entre a raiva derivada do impacto de R$0,20 centavos no preço da passagem urbana de ônibus e da corrupção (indevida) de eventuais R$ 51 mil ou da gradação do impacto de R$ 51 milhões – flagrados em posse de declaradíssimo e historicamente fiel amigo do rei nu –, assim como tampouco causa estupor à trupe verde-amarelo desbotada de ontem o crime de lesa-pátria causado pela pura entrega de aproximados R$1 trilhão da riqueza nacional derivada da alienação criminosa do petróleo nacional. Hoje é clara a sua posição: são titulares de uma capacidade de ódio terceirizada, insuflada pela vênus carioca.

Os indignados seletivos hoje permanecem distraidamente agrilhoados em suas casas, aparentemente sem comunicação com o mundo exterior. Neste espaço é que está em curso a maior traição da história brasileira à democracia, à Constituição e aos mais altos interesses do país. Rigorosamente, há alguns anos não foi mobilizada uma grande massa popular que, hoje, como ontem, jaz inerte e calada. Mesmo em passado recente o segmento verde-amarelo não era a maioria dentre os mais de 100 milhões de votantes que compareceram às urnas em 2014, mas hoje sequer se pode ouvir o longínquo ruído de suas notórias panelas, agora ruidosamente silentes e bem guardadas à espera de nova convocação eletromagnética. Resta pendente desvendar a razão certa que imobiliza uma massa humana em face da intensa deterioração do presente e comprometimento do futuro, por qual razão se omite quando a avalanche se abate?

Hoje o Brasil segue curso histórico tal qual uma nau sem condução em alto e turbulento mar onde a única certeza, tanto quanto que a água dos mares a roçar o casco conduzindo-a a caminhos ignotos, é a abordagem de piratas sedentos pelo tesouro público. Em meio ao assalto pirata a trilha política foi instituindo e consolidando um parlamentarismo que já foi rechaçado maciçamente pela população brasileira diretamente em duas oportunidades históricas. O golpe de Estado alocou na cadeira uma pérfida figura, títere, que serve à corja oculta que, à sorrelfa, descoseu a estrutura democrático-social e constitucional brasileira. Hoje se afirma o poderio de uma quadrilha que se tornou fiadora de um grupo de vendilhões, de profundos traidores da pátria, que a todas luzes não têm legitimação democrática para ocupar os altos cargos nos quais se aboletaram.

O pequeno títere é mero executor de funções encomendadas desde um inexplicável e assombroso vazio de legitimidade. Triste fantoche, penumbra humana, tragicômica alegoria política locada a baixo preço pelos poderes ocultos. Enquanto isto, homens e mulheres, cristalizados, apenas assistem, e sob visível abatimento, a decrepitude da tessitura político-institucional e ao amassamento da população brasileira, exceto os milionários, que continuam a surfar no sangue, tripudiando da dor e zombando do empobrecimento coletivo.

No olhar perdido da população brasileira a percepção trabalhada pela mídia apresenta o surreal como se fosse real, o ordinário como virtuoso, o sátrapa como governante, a economia como deusa, e a falta de poder legítimo sendo substituído pela prática da força bruta como um dado natural da vida. Assim, toda a lógica imposta pelos meios reprodutores da cultura e constitutivos do significado do mundo político se consolida enquanto os valores e aspirações populares se esfumam no ar. O país foi desdemocratizado e a nação desconstitucionalizada com a singular violência política típica com que se desempenha o atroz violador ao subjugar a sua vítima. Hoje o seu mal se configura sob diversas ações de traição dos mais altos interesses econômicos nacionais, alienação de importantes recursos petrolíferos incluída. A verdadeira ponte para o futuro realmente construída pelos governos populares foi incinerada inclementemente pelo pequeno títere e pela quadrilha de precursores do atraso, vanguardistas do neofeudalismo que invadiu a cena política nacional e que entrega a preço vil o patrimônio público construído ao longo dos tempos pelo suor do povo paralelamente ao perdão de dívidas bilionárias de dezenas de agentes políticos e econômicos componentes de uma canalha sem par, suficiente para ruborescer Al Capone – longa carreira criminosa que também incluía emparedar homens –, mas que utilizava como critério a suposta inimizade, enquanto a canalha tritura homens e mulheres à rodo e ao azar.

O abatimento e a inércia da população em face da desconstrução do projeto democrático do Estado brasileiro deriva de uma mescla de incredulidade e desânimo, mas se insere em uma mudança de época cujos parâmetros todavia permanecem ocultos na penumbra. A mudança todavia não compreendida foi concretizada por uma alteração de estratégias, que implementa o pleno domínio da economia sobre todas as instâncias da vida, paradoxalmente, utilizando argumentos típicos do trecho de Tucci Carneiro em que descrevia o golpe varguista de 1930, dizendo que “[…] foi esse mesmo capitalismo que ofereceu condições para a implementação de um regime autoritário cujo discurso apoiava-se na ideia de que o Brasil necessitava de um novo modelo de Estado: forte, industrial, capitalista”. Hoje, tudo como antes, capitalismo de mãos dadas com o autoritarismo.

Em tempos de crise a democracia afirma-se através de indissociável teor redistributivista, mas é rifada pela oligarquia no poder, embora já não o faça através de mostras tão evidentes de força e escoamento de sangue. Mortes, sim, mas através de uma nova estratégia, a biopolítica, através da qual os controladores do poder assumem total gerência do orçamento e, assim, determina quem viverá e quem perecerá ao definir as condições de vida de cada grupo social, outorgando recursos para suprir a mínima subsistência ou socorro à saúde dos indivíduos, e corta-se de tudo, até medicamentos indispensáveis para a vida humana ordinariamente fornecidos pelo Ministério da Saúde. A palavra escrúpulo foi finalmente eliminada do vocabulário quadrilheiro que ainda mesmo em seus piores momentos históricos conhecidos já dispôs de códigos de conduta bastante estritos.

Dentro do quadro geral em que a vilania anda solta é compreensível que o desânimo se abata sobre toda uma sociedade, mas em nenhum caso pode nos abater. É que o mal nunca termina de ser desenhado no mundo, mas também nunca termina de ser vislumbrado em suas profundezas, mas sempre se redefine, e assustadoramente avança sem indicar limite de detenção. Mas este horizonte obscuro só não é mais intenso ou forte do que o pulso que pulsa forte em cada um de nós. A potencialidade da reação está sempre ali, latente em cada um, à espera da fagulha, do inusitado que ninguém controla ou antecipa, do inesperado, da força de ignição desconhecida do povo, do evento azaroso que, depois da ocorrência de todos aqueles dos quais mais intensamente se esperava que operassem como detonadores da reação, então, é dele, do inesperado, de onde advirá o elemento capaz de implodir o edifício do qual, em verdade, já nada mais resta do que a fachada, que cairá tão facilmente que muitos serão os que se questionarão como durou tanto tempo. Meados de novembro, a divisa, quiçá, o ponto ígneo, quando o trabalhador tomará contato com o mundo em trânsito, do jurídico-abstrato para a concreção inapelável da vida.

Cada um a seu modo, cada qual com as suas particularidades, mas entre eles nenhum em pouca monta, José Serra, Michel Temer, Aécio Neves, Fernando Henrique Cardoso, Romero Jucá e Aloysio Nunes, são eles alguns dos líderes e grandes responsáveis pela emasculação da democracia e da Constituição brasileira seguida do projeto de subjugação da população através da alienação de toda a riqueza nacional e valendo-se de uma única estratégia, a saber, transformar o país em uma grande colônia, causando uma destruição não-schumpeteriana, ou seja, não-construtiva. Estes senhores e seus asseclas não pensam o Estado, mas apenas e tão somente o instrumentalizam para fomentar a riqueza privada do grupo ao qual pertencem, ainda quando à custa de muito sangue e de milhares de vidas secas. É justamente em consequência disto que ao provocar a deterioração do Estado Luc Ferry sugere que a consequência disto é previsível, a saber, a tentação da desobediência civil.

A endinheirada escumalha golpista doa bilhões de reais de propriedade pública para empresários milionários e para transnacionais bilionárias, enquanto justificam cortar recursos essenciais para a vida de pobres cidadãos, permitindo que suas almas perdidas autorizem até mesmo a retirada de verbas alocadas para manter o serviço de caminhões-pipa em áreas atingidas pela seca no semiárido, política que serve para amenizar a dor da miséria e viabilizar uma vida repleta de riscos e rudeza singular. Quem, enfim, são os miseráveis nesta sórdida equação? (segue)

Roberto Bueno. Professor universitário.

Jornalista

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