O primeiro dia do “Ano Lula”
Dia pródigo para falar de Lula. Todo mundo só pensa em Lula, seja para odiar, seja para amar. Eu tento pensá-lo como um homem, um político, um estrategista, um formulador, um ex-presidente. Sem ele, não existe história do Brasil de 1978 para cá.
Odiar Lula é um exercício de preguiça intelectual. É importante criticar todo e qualquer protagonista político mas com argumentos, não com rótulos fáceis e chavões.
Mas, se odiar é ruim, a leitura errada é pedagógica. Devidamente desconstruída, ela ilumina processos de interpretação.
Nesse sentido, é possível reavivar uma clássica leitura equivocada de Lula, a que o enquadra como “socialista”. A esses sensíveis leitores é licenciado lançar um olhar de estupefação, pois até a resposta retórica e brincalhona de Lula nos anos 80 chegou a os ofender: “sou metalúrgico”. Explicar a piada talvez não seja uma opção, sobretudo uma piada tão sofisticada.
A origem política de Lula é o sindicato. Não tem nada de romântico, nem de intelectual, nem de salvacionismo, nem de utopia. O socialismo é que foi atrás de Lula, porque Lula o aceitou e o compreendeu melhor que os próprios “socialistas”, em grande medida.
Qual socialista no mundo produziu uma política pública como a do bolsa-família (que, mais do que sua função ética de levar comida na mesa do pobre, ainda incendiou a economia, fazendo o país sair daquele marasmo econômico da era FHC)?
Qual socialista no mundo foi tão exageradamente democrático, perdendo três eleições majoritárias e, ainda assim, submetendo-se a mais um processo eleitoral?
Qual socialista no mundo teve 258 milhões de votos ao longo de 40 anos de vida pública (e que, pasmem, continua liderando pesquisas de opinião)?
Qual socialista no mundo foi tão perseguido pela imprensa, pela elite, pelo racismo, pela justiça e pelo ódio?
Qual socialista no mundo dialogou com tantas forças do tecido democrático com tanta desenvoltura e resultados: empresariado, movimentos sociais, entidades religiosas, sindicatos, imprensa, organizações não governamentais, sociedade civil, estudantes?
Qual socialista no mundo acumulou 300 bilhões de dólares de reservas internacionais?
Qual socialista no mundo pagou uma das maiores dívidas externas do planeta?
Qual socialista no mundo emprestou dinheiro ao FMI?
Qual socialista no mundo criou um banco para fazer frente ao FMI?
Não se trata de colocar o socialismo em xeque, mas apenas de restituir alguma cifra de realidade ao argumento. Todo intelectual sério sabe que Lula nunca foi “socialista” na acepção clássica do termo e que isso é um dado fantástico: não é preciso ser socialista para lutar pela igualdade e pela democracia.
Lula é a prova de que a gestão pública não aceita a burocracia do pensamento acadêmico como elemento irradiador de políticas. Isso não é o papel de um líder histórico. Um acadêmico no poder é um desastre da natureza.
Cargos da dimensão de uma presidência de um país continental em desenvolvimento não são um trampolim carreirista qualquer: trata-se de uma responsabilidade que transcende as ambições chãs e desvirtuadas da classe média, por exemplo. Compreender essa dimensão é tarefa hercúlea para este segmento, cognitivamente falando.
Essa leitura, no entanto e ainda que equivocada, é realizada por “quase simpatizantes” de Lula, em última análise. Uma de suas consequências é aparelhar o discurso conservador: ela municia os mais viscerais detratores de Lula que usam o argumento da “traição ao socialismo” como elemento gerador de contradições em todo o campo da esquerda.
Essa faixa ‘pequeno-burquesa’ fantasia que Lula deveria ter sido um ‘simulacro’ de Fidel Castro, que ele deveria ter “eliminado” seus adversários políticos.
Ora, ora, ora. Curioso ver como o caudilho autoritário não está em Lula, mas em seus críticos – e na imprensa. Reclamam que Lula fez alianças com coronéis, mas o que afinal eles queriam? Que Lula expulsasse os coronéis do país? Os coronéis do PMDB?
É isso que fica subscrito no pensamento radical de ambos os extremos do espectro ideológico. A solução que eles eventualmente oferecem ao embate político é ‘eliminar’ o adversário.
É por isso que a democracia não é para os fracos. É por isso que a democracia exige coragem e humildade ao mesmo tempo. É por isso que eles não entendem a democracia, por assim dizer.
Lula é uma esfinge para esses anti-analistas, mestres em diferentes níveis na arte da não argumentação. Para eles, tudo é rótulo, tudo é estereótipo, tudo tende ao sentido único. Eles pouco entendem o que é racismo, quanto mais o que é política.
A história, no entanto, não é uma donzela recatada e do lar. Ela não segue a lógica primitiva dos seres não argumentativos. A história gosta de conteúdo.
Para a história, o golpe é só um elemento narrativo extremamente poderoso. Um antissujeito, uma perturbação, um “tranco” semiótico que prepara a retomada da progressão e dos protagonismos das personagens principais.
E uma personagem de narrativa histórica que se preze não pode ser “transparente”, visível a todo e qualquer observador. Ela exige uma face enigmática, esfíngica, caso contrário anula-se o elemento de suspense.
Tudo isso só para dizer – aos que insistem em não compreender Lula – a seguinte dica de ano novo: continuem não compreendendo Lula. Ele se alimenta da não compreensão de vocês.
GUSTAVO CONDE
Gustavo Conde é músico, linguista e professor. Lida com teorias do humor e com os processos de produção do sentido político. É autor do Blog do Conde, espaço de discussão de temas políticos, acadêmicos e literários