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Em plena democracia, Abin sonegou informações às vítimas da ditadura

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Agência substituiu o antigo SNI, seguiu fazendo arapongagem e sonegou dados dos 308 mil prontuários de familiares e vítimas do regime militar. Acervo foi para o Arquivo Nacional, que liberou as informações

No centro de um escândalo de arapongagem ilegal, a Agência Brasileira de Informações (Abin) carrega, não de hoje, os traços e métodos do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), braço de apoio à ditadura, que monitorou milhares de opositores do regime e contribuiu com seus informes com a efetivação de prisões, mortes, tortura e desaparecimentos. 

O SNI foi extinto em 1990, por Fernando Collor de Mello. A Abin foi criada em 1999, sancionada por Fernando Henrique Cardoso (PSDB), após ser aprovada pelo Congresso Nacional. Mas parte dos servidores do antigo serviço de informação seguia no cargo, mesmo com a redemocratização do país e após algumas eleições presidenciais, pelo menos três delas.

Coube à Abin, restaurada a democracia e quase 20 anos após o fim da ditadura, repassar aos familiares dos que foram mortos pelo regime e os perseguidos políticos todas as informações que continham sobre essas pessoas e as circunstâncias dessas mortes e perseguições. O acesso a esses dados era garantido pelo instrumento do habeas data, instituído na Constituição, em 1988, e que autorizava a todo cidadão o direito de requerer as informações sobre si que estavam nas mãos do Estado. 

Não foi fácil. Em pleno primeiro mandato do petista Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006), a Abin ainda resistia a emitir as certidões com esses dados. Aos pedidos dos perseguidos políticos, dos familiares e de comissões criadas para fazer a reparação das violações e atrocidades cometidas pelo regime — Anistia e Mortos e Desaparecidos — a Abin respondia: “o pedido é inconstitucional por violar a intimidade, a honra e a imagem dessas pessoas”, respondia a Coordenação-Geral de Documentação da Abin. Isso no ano de 2003, primeiro ano da gestão Lula. 

Foi preciso um trabalho de convencimento para que essas certidões fossem emitidas. Eram importante para as pessoas provarem a perseguição e reivindicassem a condição de anistiado e também buscassem reparação econômica. Somente em 2005 essas certidões começaram a ser liberadas com maior frequência e, ainda assim, boa parte das informações eram sonegadas. Na sua grande maioria, era um sumário, com informações precárias sobre a real perseguição do Estado. E, muito comum, a resposta era um “nada consta” sobre a pessoa. 

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Certidão da Abin. de 2004, com “nada consta” sobre ex-perseguido(foto: ed arte)

Ainda assim, algumas das vítimas da ditadura, de alguma maneira, se satisfaziam e celebravam que ao menos algum informe foi dado. Nesse período, a Abin chegou a ser até sinônimo de manifestação do Estado. Era comum ouvir entre essas pessoas o seguinte diálogo: “Já peguei a minha ‘Abin’. E você, já pegou a sua?”

As coisas mudam a partir do fim de 2005, quando, em novembro daquele ano, um decreto de Lula determinou a entrega daqueles arquivos, dos acervos dos extintos SNI, Comissão de Segurança Nacional (CSN) e da Comissão Geral de Investigação (CGI), até então sob guarda da Abin, fossem transferidos para o Arquivo Nacional em Brasília. Ao todo, 220 mil microfichas, com 10 milhões de páginas de texto. A base de dados criada pelo SNI continha 308 mil prontuários com dados de qualificação de cidadãos brasileiros e estrangeiros, empresas privadas e instituições. 

A partir dessa transferência, o atendimento às vítimas da ditadura e seus parentes mudou. O Arquivo Nacional, ao contrário da Abin, não sonegou informações. As certidões emitidas pelo órgão eram bem diferentes. Desde janeiro  se deu a abertura da consulta pública aos acervos dos órgãos de controle e de repressão do regime militar, esses acervos do SNI, CGI e CSN que eram inacessíveis na Abin.

Dois historiadores do Arquivo Nacional relatam a diferença de procedimento na confecção dessa certidão, comparada com a emitida pela Abin. Num artigo na revista Acervo, em 2008, Vivien Ishaq — doutora em História e que foi supervisora do Núcleo dos Acervos da Ditadura Militar no arquivo de Brasilia — e Pablo Franco, historiador e da coordenação do arquivo, trataram dessa diferença. 

“Uma modificação qualitativa importante implementada pelo Arquivo Nacional foi a emissão de uma certidão declaratória contendo os resumos da base de dados de todos os documentos nos quais o requerente ou o tema é citado, ao contrário do procedimento empreendido pela Abin, cuja certidão era um resumo de informações selecionadas sobre o requerente. A partir desta certidão declaratória, emitida pelo Arquivo Nacional, o cidadão pode requerer as cópias de todos os documentos que lhe interessar, tendo acesso, pela primeira vez, aos documentos do SNI e de todos os outros acervos em sua íntegra. O Arquivo Nacional vem, assim, assegurando, de acordo com a legislação vigente, o direito à informação e o acesso aos arquivos gerados pelos órgãos de repressão política durante os regimes militares no Brasil”, argumenta, sob a diferença da disponibilização pública dos arquivos da ditadura. 

Augustino Veit, ex-presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos
Veit presidiu a Comissão de Mortos no primeiro governo de Lula: “Abin nunca serviu ao Estado”(foto: Arquivo pessoal)

Presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos entre 2004 a 2006, o advogado Augustino Veit, um militante dos direitos humanos, lembra desse período e da dificuldade de se obter junto à Abin, mesmo no governo Lula, documentos do SNI e que seriam importantes para embasar os processos no colegiado. Veit diz que a Abin nunca atuou como um órgão de Estado. 

“A Abin sempre seguiu a doutrina de segurança nacional, de prezar pelo controle do inimigo interno. Desde sua criação, mesmo nos governos de Fernando Henrique e de Lula, levantava informações sobre as pessoas, os movimentos sociais, a esquerda. Nunca foi um órgão a serviço do Estado. O que está sendo demonstrado, mais uma vez, agora com o que estamos vendo”, diz Augustino Veit. 

A psicóloga Vera Vital Brasil foi presa na ditadura, se exilou no Chile e, desde 1991, atende em seu consultório pessoas que passaram por essas violências do Estado. Vera coordenou o projeto “Clínicas do Testemunho”, no Rio, da Comissão de Anistia, de atenção psicossocial a pessoas anistiadas e seus familiares, entre 2013 e 2015. Ela também pediu a certidão na Abin, en 2002, e fala da precariedade dessa informações. 

“A começar, era uma certidão com uma lateral dourada, exagerada, de chamar a atenção. Parecia um diploma, uma coisa absurda. Vinha com essa pompa e circunstância, algo até infame. E com mentiras e falsidades a meu respeito, sobre a minha trajetória”, conta Vera, que foi anistiada. 

“Depois, entrei com processo na Comissão de Anistia, em 2008, que aí as informações a meu respeito (do Arquivo Nacional) eram outras, menos comprometidas como as da Abin. Não era aquela coisa grotesca”, completa a psicóloga.

A advogada Ana Muller, que atua na defesa de ex-perseguidos políticos desde a década de 1970, período mais crítico da ditadura, lembra que o acesso a dados das vítimas do regime nos arquivos do SNI nunca foi fácil e se recorda que a sonegação ou a negação foi a tônica desses órgãos da repressão. E que mesmo a Abin, instituída na vigência da democracia, nunca correspondeu às expectativas. 

“Era tanta sonegação de informação. No caso dos desaparecidos políticos que foram mortos, não davam, claro, informações para esclarecer as circunstâncias que ocorreram essas mortes. Quantas mães no Brasil sem informações sobre seus filhos, até hoje. E quando vinha algum dado nunca era suficiente para nada”, conta Ana, que fala ser preciso testemunhas desses episódios para relatar o que de fato ocorreu.

“A gente se baseia muito em testemunhos para formar a convicção do fato. Não basta, na frente de um juiz, por exemplo, uma mãe dizer que seu filho militava na esquerda e que desapareceu. E, nesses arquivos, nunca vão constar muita coisa. Nessas certidões vão aparecer que o militante esteve num Congresso da UNE e outras informações que não os comprometa. Agora, sequestro, prisão ilegal, cárcere privado, isso não tem chance de aparecer.” 

“Memórias reveladas”

Para o historiador Lucas Pedretti, todos os processos que envolvem a justiça de transição ou reconhecimento das violências perpetradas pela ditadura são lentos e limitados. Ele destaca dois momentos que podem ser considerados avanços nesse campo: a transferência dos arquivos da Abin para o Arquivo Nacional e o projeto, desse mesmo órgão, de 2009, das “Memórias reveladas”, que deu visibilidade ao período dos anos de chumbo. 

“Houve um avanço significativo no acesso desses documentos a partir desse período. Esse trabalho de recuperação das certidões, mostrando que a Abin neglicenciava ou negava é importante para os demais órgãos de inteligência, das Forças Armadas, das polícias. Mostra que, mesmo depois da transição o modus operandi, a forma de visão são semalhantes do que ocorreu na ditadura. Em outras palavras, é revelador do quanto faz falta até hoje uma reforma institucional voltada para adequar esses organismos de estado à democracia, ao Estado de Direito”, diz Pedretti, integrante da Coalizão Brasil por Memória Verdade, Justiça e Reparação.

Pedretti acredita que a presença de Marco Cepik na diretoria adjunta da Abin pode contribuir. “Pode ser uma inflexão virtuosa no órgão e alterar essa lógica do inimigo interno e da velha arapongagem do SNI. As Forças Armadas, que ainda se julgam um poder moderador, carecem de processos voltados para submetê-los às regras da democracia, e não atuar mais tendo em vista a doutrina de segurança nacional”, afirma o historiador

Com informações do Correio Braziliense

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