
Expectativa de fazer justiça a outras vítimas
Com o reconhecimento internacional do filme Ainda estou aqui, na conquista do Oscar, a ex-presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos espera mais recursos e menos restrições ao trabalho que apura casos ainda ocultos do período autoritário
O Oscar de Melhor Filme Internacional para Ainda estou aqui provoca uma série de expectativas, sobretudo para quem aguarda a justiça para as vítimas dos crimes cometidos na ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). É o caso da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), recriada em 2024, mas que sofre com a ausência de um orçamento próprio e adequado para o que se destina, além de entraves que dificultam certas ações.
Com a missão de reconhecer formalmente as mortes desse período e localizar os corpos das vítimas, o colegiado tem de desempenhar um trabalho árduo e dispendioso, atualmente concentrado no Cemitério Dom Bosco, chamado de Perus, em São Paulo, além de buscas de corpos no Araguaia e em cemitérios públicos do Rio de Janeiro e do Recife.
Em entrevista ao Correio, a ex-presidente da comissão Eugênia Gonzaga diz estar confiante de que a atenção criada pelo longa em torno do período militar, com os desaparecimentos, as torturas e os assassinatos, mais recursos sejam investidos na causa.
“Além da possibilidade do reconhecimento formal, a comissão tem a obrigação de fazer a busca de corpos nos casos em que há indícios de onde estão localizados. É um trabalho muito difícil, muito caro, que envolve muitos profissionais, e a comissão nunca teve orçamento próprio para isso”, afirma.
Desde sua criação, o colegiado depende da estrutura do Ministério dos Direitos Humanos, pasta que também sofre com a limitação financeira. Sem verbas específicas para contratações de profissionais, como peritos, e financiamentos de pesquisas, a comissão apelou para o Congresso Nacional. “(Como) esse orçamento não veio do Executivo, então fomos buscar via emendas parlamentares”, explica. Porém ela diz que, ainda assim, faltam recursos.
Apesar das dificuldades, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos comemora avanços significativos. Em 2018, por exemplo, foram identificados dois desaparecidos políticos entre as ossadas de Perus, cemitério clandestino na zona norte de São Paulo. “Parece um número pequeno, mas não é. Na América Latina, em 15 anos, foram os dois únicos casos de identificação, porque é um trabalho realmente muito difícil, muito complexo, mas tem caminhos, é possível fazer”, ressalta Eugênia Gonzaga.
Outros entraves
De acordo com a ex-presidente, os entraves ao trabalho da comissão não se limitam à falta de recursos, atingem também resistências às investigações e uma burocracia arraigada e vinculada ao passado ditatorial. Segundo Eugênia, até em casos de grande repercussão, como o do ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido entre 20 e 22 de janeiro de 1971, surgem empecilhos para tentar impedir as apurações.
“Até hoje, mesmo no caso do Rubens Paiva, tão rumoroso, você ainda tem informações e contrainformações em que fica muito difícil dizer exatamente o que aconteceu. Não há uma versão final e oficial sobre centenas de casos de militantes políticos”, lamenta. “A luta para localizar e identificar os desaparecidos políticos segue como uma questão pendente na história do Brasil. Enquanto a estrutura da comissão permanecer frágil, famílias continuarão sem respostas, e o país seguirá em dívida com sua própria memória.”
No domingo, o Ministério Público Federal divulgou um vídeo em que detalha as investigações sobre os crimes cometidos durante a ditadura civil-militar, com destaque para Paiva. A partir da denúncia, apresentada em 2014, cinco agentes de segurança são investigados — apenas dois deles estão vivos. Há, ainda, outros processos referentes ao período da ditadura. O tema está suspenso porque aguarda interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) para definir se esses crimes são protegidos pela Lei da Anistia ou se serão excluídos. Para o Ministério Público, esses atos têm caráter “permanente”, portanto, não podem ser abarcados pela lei.
Eugênia reclama da ausência de transparência sobre a abertura para os documentos militares e a resistência em reconhecer crimes da ditadura, daí a expectativa dela em torno dos efeitos do filme Ainda estou aqui na vida prática da comissão, uma vez que o país passou a se interessar pelo tema e cobrar respostas. “É possível fazer”, frisa.
Quatro perguntas para
Eugênia Gonzaga, ex-presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP)
O que significa a premiação do Ainda estou aqui para pessoas, como a senhora, que lutam pelo reconhecimento dos crimes da ditadura?
Em primeiro lugar, estou extremamente comovida e feliz com a homenagem feita a Eunice Paiva. É claro que ela representa muitas mães e esposas em uma luta incansável, assim como centenas ou milhares de famílias, cujos pais e filhos foram vítimas da violência do Estado. É muito importante destacar o papel dessa mulher. Tive a oportunidade de conhecê-la. Em 2017, eu e outro perito da comissão realizamos a coleta de sangue dela e de seus filhos para a obtenção de material genético destinado ao banco de DNA da Comissão Especial sobre Mortes e Desaparecidos Políticos. Já conhecia sua filha Vera (a mais velha dos cinco filhos de Eunice e Rubens Paiva), que também é membro da comissão e conselheira junto comigo. Conhecer Eunice foi uma experiência profundamente emocionante, pois eu já tinha conhecimento de sua trajetória e luta.
Como foi esse encontro?
Ela já enfrentava o Alzheimer, mas, mesmo assim, foi completamente colaborativa e disponível. Algum tempo depois, Eunice faleceu, precisamente no dia 13 de dezembro, data que marca o aniversário do AI-5 – o famigerado ato que levou à cassação de seu marido. No velório, sua filha Vera comentou: “Você concorda que minha mãe precisava fazer um último ato político? E esse ato político foi falecer no dia 13 de dezembro”. Ontem (neste domingo), quando o Walter fez aquele oferecimento, tão bonito, para ela, que esse Oscar é dela, eu falei assim: “Nossa, falecer no dia 13 de dezembro não foi o último ato político dela. Ela ainda está aqui! A luta dela continua reverberando e vai reverberar sempre”.
Diante da repercussão, dos cinco milhões de pessoas que foram ao cinema ver o filme e do interesse que o tema despertou, o que a senhora espera em termos práticos?
No final do ano passado, por exemplo, foi muito mais fácil conseguir emendas parlamentares para viabilizar esse trabalho. Acredito que estamos vivendo um novo momento, em que as pessoas conhecem melhor o trabalho da comissão e compreendem sua importância. Sabem que não se trata apenas de algo do passado, mas de uma questão que continua presente nas famílias afetadas. Esse é um tipo de trabalho que precisa ser replicado para os desaparecidos da atualidade. Toda a expertise que desenvolvemos na busca por corpos e no acolhimento das famílias de desaparecidos deve ser aplicada também às vítimas do presente. E, agora, acredito que teremos mais possibilidades de alcançar esses objetivos.
Como o Ministério Público Federal reabriu as investigações do caso Rubens Paiva, será que outros virão?
O que me preocupa é o recorte que está sendo feito ao limitar a possível decisão apenas aos casos de ocultação. A questão da Lei da Anistia está no STF desde 2010, quando foi decidido que ela beneficiava os agentes da ditadura. Essa decisão foi política, pois a Lei da Anistia não menciona diretamente os militares ou agentes da ditadura; isso foi uma interpretação baseada em um pacto político equivocado, que apostou no esquecimento para consolidar a democracia. Após essa decisão, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que a Lei da Anistia não se aplica a graves violações de direitos humanos, pois esses crimes são contra a humanidade e não podem ser anistiados ou prescrever. Houve recursos e novas ações questionando a decisão do STF, mas o tribunal nunca voltou a analisar o tema. Desde 2010, o julgamento dessa questão tem sido adiado. Primeiro, ficou com o ministro Fux, depois com Toffoli, e ainda aguarda análise. Se as ações mencionadas tivessem sido julgadas, já teriam efeito geral, pois são coletivas. No entanto, em vez de resolver essa questão de forma ampla, o STF tem julgado ações individuais, muitas das quais já perderam o sentido, pois os réus faleceram, assim como testemunhas e familiares. O Brasil demorou demais para tratar desse tema. Agora, quando finalmente decidem pautá-lo, limitam a análise apenas aos crimes permanentes, como a ocultação de cadáver, o que é um recorte muito restrito. Alguns podem argumentar que isso é melhor do que nada, mas, após 15 anos, essa limitação é vista por familiares como uma migalha, e não como justiça. Um exemplo disso é o caso de Rubens Paiva, que envolve quatro crimes: homicídio qualificado, fraude processual, ocultação de cadáver e formação de quadrilha armada. Se essa limitação prevalecer, apenas um dos quatro crimes será analisado, e isso se repete em várias outras ações. Se o julgamento ocorrer da forma como tem sido noticiado, será melhor do que nada, mas, após tanto tempo, representará mais uma derrota, pois muitos crimes ficarão impunes.
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