Desde a sua publicação, lei contribui para lisura das contas públicas, mas, dizem especialistas, ainda deve ser aperfeiçoada
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) completa, neste domingo, 25 anos de publicação e vem resistindo a vários governos, de esquerda e de direita. Prevista na Constituição de 1988, a regra, elaborada no governo do ex-presidente tucano Fernando Henrique Cardoso, tem contribuído para a sustentação do Plano Real, de 1994, pois disciplinou e deu transparência no processo de contabilização de receitas e de despesas dos governos federal e regionais.
A regulamentação da LRF, entretanto, não foi concluída até hoje. Uma das principais medidas previstas, a imposição de um limite para a dívida pública, segue em aberto, lembram os autores da regra.
A LRF faz parte da estrutura do tripé macroeconômico — controle da inflação, câmbio flutuante e superávit primário (economia para o pagamento dos juros da dívida pública) —, que foi o modelo econômico adotado pelo governo FHC após o Plano Real. Essa terceira perna segue manca justamente por não ter a regulamentação da LRF, que teve ajustes ao longo dos anos.
Dados públicos
Um dos pontos positivos da LRF, na avaliação dos especialistas ouvidos pelo Correio, é a obrigatoriedade da transparência dos dados públicos na internet, que teve resistência entre parlamentares da oposição, que chegaram a questionar no Supremo Tribunal Federal (STF) após a sua publicação. “Eu me lembro, em um dos debates na Câmara, de um deputado que questionou o fato de a lei obrigar que as informações ficassem à disposição do público na internet, porque a internet era discada e havia municípios que nem luz tinha. E, realmente, naquela época, a internet era discada, mas expliquei que o importante disso é que muita coisa teve que ser construída. Foram construídos padrões, conceitos, modelos de relatórios e todo um sistema. Porque é dinheiro público e que se há informação precisa ser pública”, relata a economista Selene Peres Nunes, uma das autoras da LRF.
Nunes era a técnica da equipe econômica responsável por explicar a proposta aos parlamentares no Congresso e recorda que o governo FHC não tinha maioria no Legislativo e, mesmo assim, conseguiu quórum para aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Segundo ela, os parlamentares estavam divididos entre o pró-gasto, que achava que gasto é vida, e o pró-equilíbrio fiscal, que acabou vencendo com ampla maioria. “Houve muito trabalho para convencer (os parlamentares) e houve, inclusive, quem fosse até o Supremo, dizer que isso era invadir as prerrogativas dos estados, porque estavam obrigando os estados a darem informação para a União, mas a informação não era para a União e, sim, para o público. A União só ia consolidar a informação”, destaca. “Enfim, foram muitas batalhas, e, hoje, é até engraçado, porque o mundo está na telinha do celular e o acesso à informação foi simplificado”, emenda.
A especialista em contas públicas destaca que o processo todo, até a publicação, em 4 de maio de 2000, levou mais de um ano, pois a proposta começou a ser elaborada entre agosto e setembro de 1998 e, apenas na Câmara, quando começou a tramitar por volta de abril, foram nove meses de debates ao longo do ano seguinte. Mas, como os senadores participaram dos debates na Casa, a aprovação pelos senadores foi mais rápida e houve um acordo para que o texto não fosse mudado para não retornar à Câmara e ir logo à sanção, que teve vetos, por exemplo, a uma proposta para incluir na lei que a União assumiria as dívidas de restos a pagar com empreiteiras, contabilizadas e não contabilizadas.
Selene Nunes ressalta que, naquela época, os deputados ficaram com medo de que a LRF interferisse nas emendas parlamentares, que não têm o tamanho atual. “E foi um escândalo e ainda não havia o Orçamento impositivo e o governo tinha mais controle sobre o Orçamento”, destaca. Para ela, uma mudança positiva na regra nesses anos foi a Lei de Transparência Fiscal, aprovada em 2016, e que, em 2021, foi alterada pela Lei Complementar 178, que instituiu o Programa de Acompanhamento e Transparência Fiscal.
Ajustes
Selene Peres demonstra preocupação com a escalada do endividamento público e defende a necessidade de aperfeiçoamento da regra com as regulamentações previstas para que ela seja respeitada e ajude evitar uma explosão da dívida pública.
Analistas reconhecem que, com a pandemia da Covid-19, não só o governo do Brasil, mas o mundo todo, acabou se endividando e, apesar de a dívida pública bruta do Brasil ter recuado mais do que a de outros países, ela ainda segue elevada para padrões de países emergentes, chegando a 88,3% do Produto Interno Bruto (PIB), em março, levemente abaixo à taxa de fevereiro, de 88,6% do PIB —, conforme dados do Banco Central, considerando a metodologia utilizada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Nunes lembra que, no processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), as contas do governo foram rejeitadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) duas vezes, por conta da contabilidade criativa, desrespeitando a LRF. “Na época, as denúncias foram reduzidas por razões políticas, pois os técnicos identificaram mais de 10 tipos de pedaladas diferentes”, ressalta.
Contudo, o consenso entre economistas ouvidos pelo Correio é que, apesar de as contas públicas estarem no vermelho desde 2014, salvo 2022, quando o governo anterior conseguiu contabilizar um pequeno superávit primário contábil de 0,5% do PIB, em grande parte devido às pedaladas no pagamento de precatórios — dívidas judiciais da União — que passaram a serem permitidas por meio da aprovação da PEC dos Precatórios, aprovada em 2021.
O especialista em contas públicas, Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos, considera que a Lei de Responsabilidade Fiscal “é o grande marco de reformas fiscais e institucionais na área das finanças públicas”. “A LRF cumpriu o seu papel de melhorar as condições das contas dos governos, nos três níveis da Federação, ampliando a transparência e obrigando a um padrão mínimo de compromisso com prestação de contas e responsabilidade fiscal”, afirma. Salto, contudo, defende que a comemoração dos 25 anos da regra deveria ensejar a retomada dessa agenda. “A Lei Geral de Finanças Públicas é do Governo João Goulart, a 4.320, de 1964, e precisa, urgentemente, ser reformada no âmbito de uma estratégia de planejamento econômico e orçamentário de maior fôlego”, frisa.
Gabriel Barros, economista-chefe da ARX Investimentos, reforça a necessidade de aperfeiçoamento da regra. “A LRF foi uma regra bastante avançada para a época em que foi adotada, mas é importante lembrar que a vida é dinâmica e a norma precisa ser aperfeiçoada. Ela perdeu enforcement na última década, em particular, e já não é mais referência e suficiente para endereçar a sustentabilidade das contas públicas do país”, afirma o especialista em contas públicas, criticando as tentativas de burlas para driblar a LRF. “São conhecidas as manobras contábeis que muitos entes subnacionais lançam para, no papel, cumprir a lei sem que, na prática, executem uma política fiscal responsável. O aniversário de 25 anos da lei deveria marcar sua maioridade e necessidade de amadurecimento para que possamos continuar evoluindo no quadro fiscal institucional”, defende.
Sobrevida
Roberto Padovani, economista-chefe do banco BV, destaca que a LRF vem sobrevivendo a diversos governos desde que foi aprovada e teve uma grande importância ao longo desses 25 anos, apesar das críticas recentes sobre o arcabouço fiscal e sua eficácia. “Acho que essa construção institucional de 1999 mudou a cara do país, porque as regras econômicas, aos trancos e barrancos, foram preservadas durante vários mandatos e vários cenários”, avalia Padovani.
Concretização
Para o economista, que integrou a equipe econômica que implementou o Plano Real, a LRF é uma lei que pegou e não existe apenas no papel. “A lei pegou. Acho que a agenda fiscal no Brasil está bem estabelecida. É um regime de política. Você vê que ela atravessou vários governos, vários ambientes e situações políticas. Talvez o mais impressionante seja o terceiro mandato de Lula com preocupação em regra fiscal. E isso é uma novidade, é a primeira vez que eu vejo o governo Lula se impondo uma regra. Isso é uma novidade”, complementa.
Selene Peres Nunes, por sua vez, não poupa críticas ao arcabouço fiscal devido ao grande número de despesas que acabam ficando fora da conta para que o governo consiga cumprir a meta fiscal estipulada sem acionar os gatilhos de contenção de despesas que são previstos. “Temos um arcabouço fiscal que é fictício, porque trabalha com uma meta, com uma série de despesas que estão fora da conta”, lamenta. Ela lembra que o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2025, além de ter um buraco de R$ 118 bilhões que precisam de receitas ainda não aprovadas pelo Legislativo, tem estimativas subdimensionadas. “Os números previstos para as despesas com abono salarial e Benefício de Prestação Continuada (BPC), por exemplo, não estão realistas. Eles são muito maiores e devem ampliar o rombo da Previdência”, alerta.
Nunes ainda critica o fato de o governo, assim como o Congresso, continuarem aumentando as despesas orçamentárias sem ter, de fato, receitas recorrentes para fazer frente e, com isso, seguir aumentando a dívida pública bruta, dificultando o trabalho do Banco Central no controle da inflação, que precisa ficar abaixo do teto da meta, de 4,5%. “Existe uma falta de coordenação entre política fiscal e a política monetária, o que faz o Banco Central fixar uma taxa de juros cada vez mais elevada, porque ele vê que as expectativas de inflação são maiores. Mas, quando ele faz isso, o governo vai por outro lado e aumenta as despesas. Então, fica muito difícil porque o Banco Central está enxugando gelo. Ele não consegue dar conta de controlar a inflação sozinho. Ele precisaria de apoio da área fiscal”, frisa.
José Roberto Afonso, economista e professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), que também participou do grupo que criou a LRF, tem uma visão mais otimista sobre a evolução da LRF e descarta riscos de uma moratória, como aconteceu no passado. “Em 25 anos, a lei atingiu sua maioridade e marcou uma mudança cultural no país, na forma como se trata e se encara as coisas e contas públicas”, afirma.
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