A História não é um romance. Menos ainda um conto de fadas
Penso em muitos dos meus amigos ao ler a coluna de Arnaldo Bloch, em O Globo de hoje, emotiva e bem escrita, onde ele relembra os 15 anos da posse – “catártica”, como diz ele – de Lula e procura apontar os erros do seu governo, embora reconhecendo que “é óbvia a gana com que se vai à sua caça”, sem deixar de ver que ela vem de um “ressentimento de quem, no fundo, jamais engoliu ver o operário subir a rampa [do Palácio do Planalto]”
Fico refletindo como é tentador, a nós que observamos a política sem o ônus de fazê-la, achar que o nó da questão reside em manter um comportamento ético e moral e fidelidade a programas. Um e outro, claro, são importantíssimos (fun-da-men-tais, gostam muitos de dizer, escandindo as sílabas), mas subjetivos demais, para mim.
Não fiz outra coisa senão praticá-los, há quase 60 anos – claro que com as limitações de todo ser humano – e não creio que isso me faça diferente de qualquer um, ou até da grande maioria. Tenho amigos absolutamente honestos, nada mercenários, humanistas, coerentes e conservadores.
O que nos torna diferentes é o sentido histórico dos nossos atos e história não é o que se passa com indivíduos, mas com coletividades.
O que se passa tendo os indivíduos como centro e a época como cenário é romance. E se o personagem foi perfeito, sem defeitos e contradições, nem isso: são contos de fada.
Não sou “lulista”, como não fui “brizolista” antes, como cultor de seres humanos, limitados e falíveis como todos somos. Mas como símbolos e catalisadores de uma vontade que as coletividades jamais expressarão em arte ou ideologias, conquanto frequentemente se expressam em líderes.
Conheci um, de perto e por muitos anos. A sua intimidade – o pouco que resta a quem entra na vida pública remando contra a maré – só interessa aos medíocres ou aos que querem usá-la para desmerecer seu papel público.
Por isso, embora compreenda o olhar de quem tem essa visão – mesmo ateia – de pureza e pecado, enxergo o mundo de outra forma, vejo como o movimento das coletividades humanas, fluindo e refluindo na corrente de seus interesses.
É por isso que nossos pequenos remos podem, volta e meia, nos empurrar adiante, mesmo contra os poderosos motores do dinheiro, da mídia e do conformismo.
História é algo que mói vidas para ser feita. Retidão e austeridade são apenas requisitos para não ser rapidamente tragados pela máquina. Mesmo com elas, o tempo nos levará.
O que faz diferença é o quanto somos capazes de interpretar e dar forma aos desejos coletivos de progresso, mesmo contra um mundo que diz que o progresso é do indivíduo e de seu esforço e capacidade, esta tal meritocracia que exalta a soberba, o autoritarismo e o exercício arbitrário das próprias razões dos sabidos e dos bem-postos.
Não há, com o perdão dos ingênuos bem-intencionados, que falar em “sonho desfeito” sobre alguém que depois de três ou quatro anos “em que se vai à sua caça” segue representando – no mínimo – perto de metade da população.
Tanto que, se fosse assim “um sonho desfeito”, não estariam a jogar todas as fichas num processo traumático de exclusão de Lula da disputa eleitoral.
POR FERNANDO BRITO