A atuação dos conselhos de medicina diz respeito a todos nós, médicos e sociedade
Atuação dos conselhos de medicina é de interesse público
Em 15 de agosto foram divulgados os resultados das eleições para os Conselhos Regionais de Medicina.
Dos 27 CRMs, apenas no Distrito Federal a oposição venceu. O fato chamou a atenção de diversos segmentos da sociedade, além da classe médica.
Como chapas de situação tão criticadas por suas ações ou omissões durante a pandemia foram reeleitas?
Neste artigo de opinião, procuro discutir o fenômeno e defender a ideia de que as eleições para os conselhos de medicina são, ou deveriam ser, de interesse público.
Começo por São Paulo, estado onde resido e atuo profissionalmente.
Aqui, a oposição levou a maioria dos votos, mas não a eleição.
Ao final da apuração no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) a chapa vencedora celebrou efusivamente.
Justo? A ver.
Tão logo saiu o resultado, alguém na sala filmou a comemoração e postou na internet.
O vídeo com título “Vencemos as eleições do Cremesp” circulou amplamente nas redes sociais.
Nele, médicas e médicos gritam, pulam e dançam ao som da música “We are the Champions”, da banda britânica Queen. Composta por Freddie Mercury, a canção é um dos maiores hinos da história do rock.
Não haveria nada de errado na celebração, exceto por dois detalhes que me chamaram a atenção.
Pormenor 1. Estranhamente, ao fundo da cena, o presidente da comissão eleitoral levanta os braços, grita como se seu time de futebol tivesse ganho o campeonato e abraça a presidente reeleita.
Como a comissão eleitoral que, deveria zelar pela imparcialidade e idoneidade do processo de votação, celebra tão efusivamente assim em público?
Pormenor 2. Um delegado do Cremesp, conhecido por disseminar fake news, também festeja a vitória da chapa 1 em São Paulo.
Atualmente ele responde por 74 processos judiciais, 20 dos quais criminais, incluindo vários sobre denúncias de calúnia e difamação.
Em pelo menos um desses processos, o médico foi condenado a três meses de prisão por propagar informações falsas e injúrias em 2020.
”Como isso é possível?”, muitos se perguntam.
A resposta é simples: os tempos jurídicos não acompanham os tempos políticos. A execuções das punições demoram e. neste vácuo de tempo, as más práticas se perpetuam e influenciam a opinião de muitos médicos votantes.
O vídeo a que me referi acima não é prova, mas levanta suspeitas que não deveriam existir.
Conceição Lemes discute bem isso em sua matéria “Vitória do negacionismo, da mordaça e do terrorismo” , onde discorre sobre suspeitas de abuso de poder e uso da máquina nessa eleição.
Sim, o vídeo nada prova, mas tampouco inocenta o membro da comissão eleitoral ou garante a idoneidade do processo eleitoral.
Discordo apenas de uma afirmação da jornalista quando escreve que “a maioria dos médicos escolheu se alinhar aos que ignoraram o Código de Ética Médica durante a pandemia de covid-19 e adotaram o negacionismo científico na prática profissional’. Não creio que seja bem assim.
Como se elege um conselho regional de medicina
É importante entender o processo eleitoral do sistema conselhal de classe.
Para começar, as regras eleitorais são estabelecidas pela própria categoria profissional, em respeito ao princípio da autonomia coletiva.
No caso dos conselhos de medicina, a eleição se dá em apenas um turno. Ganha, portanto, a chapa com mais votos e não, necessariamente, aquela com maioria de votos.
O que aconteceu em São Paulo mostra muito bem isso. A chapa reeleita teve apenas 32% do total de votos (37% dos válidos). Isso equivale dizer que 63% dos médicos paulistas disseram “não” ao continuísmo.
Alguns podem argumentar que a contraposição à situação deveria ter se organizado melhor, talvez com menos chapas concorrendo no campo da oposição.
É verdade, mas não seria o caso de termos um sistema de eleição em dois turnos?
Outro ponto que merece ser discutido é o modelo de inscrição de chapa completa, com 20 titulares e 20 suplentes. Concorrem em bloco, sem que os eleitores possam escolher os que consideram melhores para representar a categoria.
É preciso levar o pacote completo. Não é possível votar individualmente nos candidatos e não há proporcionalidade. Mas como seria esse modelo?
Por exemplo, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o Sindicato de Trabalhadores estabeleceu a proporcionalidade eleitoral.
Cada chapa tem direito a um número de vagas de acordo com a quantidade de votos que o grupo receber. Para ser eleito é preciso atingir, pelo menos, 10% dos votos e aplica-se um quociente eleitoral.
Quanto mais votos uma chapa tiver, mais diretores elegerá.
Essa experiência na Unicamp poderia ser uma alternativa para os conselhos profissionais, a fim de garantir representatividade da categoria, contrapondo-se a articulações que, muitas vezes, têm viés político-partidário e conflitos de interesse.
Exemplo disso foi a constituição de uma página apócrifa denominada “esquerdômetro”.
Sem nenhum critério, a página enumera quantos candidatos de esquerda cada chapa tem. Ninguém sabe de onde saiu essa ideia risível, não fosse tão catastrófica.
De qualquer forma, deixo aqui estas perguntas:
A chapa 1 tinha mesmo zero candidatos de esquerda?
Ou, melhor colocado, o que é esquerda e para quem?
E mais importante, quem financiou a página e com qual interesse?
Porque esse assunto é de seu interesse
Eleições limpas nos conselhos de medicina deveriam ser acompanhadas por toda a sociedade porque as ações ou omissões das entidades afetam não apenas os profissionais médicos, mas todas as pessoas, como vimos durante a pandemia de covid-19.
É o caso do grupo de médicos negacionistas que viram na omissão ou na dubiedade do Conselho Federal de Medicina (CFM) uma “oportunidade” de ganhar dinheiro fácil em “atendimentos” pelo Whatsapp, prescrevendo ou propondo tratamentos sem nenhum embasamento científico.
A prática nefasta, divulgada em material publicitário intitulado “Manifesto pela Vida”, dizia respeito ao tratamento precoce e ao “kit covid”. Sabe-se hoje que houve patrocínio.
Em maio de 2023, a Justiça Federal do Rio Grande do Sul condenou empresas farmacêuticas e entidades médicas ao pagamento de R$ 55 milhões por danos morais coletivos e à saúde.
Embora seja um marco na Justiça, cabe recurso para a condenação judicial. Ficou o gosto amargo para quem acreditou nesses profissionais e perdeu amigos e familiares para a covid.
Onde estavam os conselheiros e conselheiras de medicina enquanto tudo isso acontecia? Omissos, em minha opinião.
Em 2020, o Conselho Federal de Medicina permitiu o uso de cloroquina “a critério médico e com consentimento do paciente”.
Que consentimento, em que contexto?
Como médica, testemunhei abusos e denunciei publicamente as más práticas não condizentes com a ética médica.
Por exemplo, empresas que induziam seus trabalhadores a usarem o “kit covid” sem que houvesse escolha ou consentimento.
Nunca revogado, o parecer do CFM até hoje dificulta a punição de profissionais de ultrapassaram, em muito, suas atribuições, como vimos em Manaus. Lá, pacientes foram submetidos ao uso de cloroquina por via inalatória, sem que tivessem requerido ou consentido.
Ao mesmo tempo, acompanhei profissionais médicos dedicados aos seus pacientes e sua profissão.
A imensa maioria é ética e não negacionista, mas isso não se refletiu nos resultados das eleições. Acredito que a explicação disso esteja mais no processo eleitoral do que nos eleitores.
Não podemos permitir que isso se repita.
Em 2024, teremos novas eleições, dessa vez para o Conselho Federal de Medicina.
É preciso que toda a sociedade civil acompanhe, vigie e cobre eleições limpas para que seja respeitado o direito constitucional à saúde e que se cumpra o dever de um conselho de medicina que é “zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente” (artigo 2º, Lei no. 3.268/1957).
Precisamos garantir à sociedade que nenhuma pessoa será submetida a risco ou dano, por ação ou omissão daqueles que deveriam ser os guardiões da ética médica e, ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da prática da medicina.
Quem pode ser o garantidor disso? O Ministério Público?
Marcia Bandini é médica, especialista em Medicina do Trabalho.
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