Sarney: “Brasília é gosto de aventura e sonho”
Testemunha da gênese de Brasília e primeiro deputado federal a se transferir para a capital, o ex-presidente José Sarney celebra o espírito desbravador da cidade erguida por JK
Na extensa biografia de José Sarney, há um episódio que contém significado especial neste 21 de abril, aniversário de Brasília. Ele foi o primeiro deputado federal a se mudar para a nova capital, construída em meio à forte resistência de muitos políticos da época. Eleito em 1958 pela União Democrática Nacional (UDN), Sarney chegou a Brasília quando tudo era pó e construção, sonho e esperança por um novo tempo para o Brasil. “É com emoção que lembro o passado da minha vinda para Brasília, como o primeiro deputado que ousou ter essa experiência”, relata o ex-presidente nesta entrevista ao Correio. “A gente via nascer do nada prédios, estradas, avenidas, sem que revelassem o caos da construção que, afinal, é esta cidade, que o mundo inteiro quer visitar para ver o talento brasileiro no desenho arquitetônico de Oscar Niemeyer e Lucio Costa”, conta Sarney, que celebrará 94 anos nesta quarta-feira. O espírito desbravador da epopeia brasiliense ainda encanta o ex-presidente, passadas mais de cinco décadas desde a chegada ao Planalto Central. Para ele, Brasília representa “o gosto de aventura e sonho, que flutua em todos que escolheram este chão para cumprir seus destinos e sua vida”. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Brasília ainda é o berço da democracia brasileira, 60 anos após o golpe de 1964 e o 8 de janeiro?
A democracia está associada ao nascimento do nosso país. O berço da democracia brasileira vem do patriarca da Independência, que, na Constituinte de 1823, propôs que o Brasil escolheria seu destino como um país de construção civil, ao contrário dos países espanhóis, que nasceram de batalhas, como a de Ayacucho. Nessa época, José Bonifácio fez a primeira referência à mudança da capital do país para o interior, obra que Juscelino Kubitschek concretizou em nosso tempo.
Brasília cumpre o papel de guardiã da democracia?
A democracia deve ser defendida por todos os brasileiros, e especialmente pelo Supremo Tribunal Federal, a quem a Constituição entregou a responsabilidade de sua própria guarda (caput do art. 102).
Que poema ou verso resumiria Brasília?
Ninguém tem o direito de retirar do presidente Juscelino suas palavras no Ato do Lançamento da Pedra Fundamental desta capital, no discurso cuja estrutura é creditada a Augusto Frederico Schmidt: “Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada com fé inquebrantável em seu grande destino.” Juscelino Kubitschek de Oliveira, 2 de outubro de 1956.
Como foi sua experiência de vida em ver a cidade nascer, crescer e ter a dimensão que Brasília tem?
É com emoção que lembro o passado da minha vinda para Brasília, como o primeiro deputado que ousou a experiência de mudar para a nova capital. Era terra e cerrado nos redemoinhos que levantavam nuvens de poeira, e a gente via nascer do nada prédios, estradas, avenidas, sem que revelassem o caos da construção que, afinal, tornou-se esta cidade, que o mundo inteiro quer visitar para ver o talento brasileiro no desenho arquitetônico de Oscar Niemeyer e Lucio Costa. Até o lago era mistério, e Gustavo Corção dizia que não encheria. Meu primeiro apartamento foi na 105 Sul, a única quadra que estava pronta e receberia os deputados vindos do Rio — a maioria de cara fechada, pois era contrária à transferência.
O que lembra do clima político em relação à nova capital?
Da Bancada da UDN, os que apoiavam Brasília eram poucos, todos do Nordeste, Norte e Centro-Oeste: Emival Caiado, relator do projeto, goiano, muito meu amigo, que gostava do título de ter sido o primeiro galã do cinema brasileiro; Ferro Costa, do Pará; João Agripino, da Paraíba, e eu — pedindo desculpas aos outros que também foram a favor.
Qual foi a primeira impressão que o senhor teve da cidade?
Eu vivi ainda na aventura da construção, como estudantes que moravam em repúblicas e participavam dessa aventura com os olhos no futuro. Nossa presença aqui nos dava a certeza de que cumpríamos um sonho de muitos estadistas de nossa história.
Por que escolheu morar aqui mesmo com raízes históricas no Maranhão?
Moro no Maranhão, mas hoje divido a residência com Brasília, escravizado na velhice. Mais da metade da minha vida foi passada aqui em Brasília, onde fui senador por 40 anos, deputado federal por 5 anos — já cumprira 7 anos de mandato no Rio de Janeiro — e vice-presidente e presidente da República por cinco anos, tempo que carrego o título de ser o político com a mais longeva carreira do país.
Quando chegou aqui imaginou que seria presidente da República nesta cidade?
Não. Isso só ocorreu pelo destino, conduzido por Deus, que botou a mão em minha cabeça e me deu grandes responsabilidades, inclusive, a da transição democrática de um regime autoritário para uma democracia, a segunda do mundo Ocidental pelo número de eleitores, com a liberdade e a força das nossas instituições, capazes de superar dois impeachments de presidentes da República e tentativas de romper a ordem constitucional, sem esquecer que convoquei a Constituinte e fui o primeiro a jurar a Constituição de 1988.
O senhor também fez críticas à mudança da capital do Rio para Brasília?
Não. Ao contrário, fui um dos poucos que, dentro da UDN, apoiou a construção de Brasília. Isso me custou algumas incompreensões dentro do próprio partido, em que eu já era vice-líder.
Acha que o Plano de JK de interiorizar o país deu certo?
Sim. Hoje se levanta, neste Brasil Central, o maior polo de crescimento do país, sugando uma grande corrente de emigração e atraindo a construção de projetos industriais e agrícolas, que despontam em expansão o sonho de muitos brasileiros.
O senhor concorda com a tese de que foi o regime militar que consolidou Brasília como capital da República?
Fui testemunha do pensamento do presidente Castello Branco de total apoio à transferência da capital, prosseguindo no projeto que estava em curso, que realizou esta grande obra. A consolidação de Brasília é feita a cada dia pelo povo brasileiro, que hoje vive a realidade deste sonho. Lembro Jorge Luís Borges quando dizia que realizar um sonho é construir um pedaço da sua própria eternidade.
Brasília se transformou naquilo que o senhor imaginava quando chegou aqui?
Fui o primeiro deputado a desembarcar suas malas na cidade e nunca pensei que, na Presidência da República, em 1987, tivesse a felicidade de transformá-la em Patrimônio da Humanidade.
O que o senhor acha mais lindo em Brasília?
Dos edifícios, a Catedral, com as mãos postas, elevadas para o céu, em cimento, expressando a fé do povo brasileiro.
O que da Brasília de ontem se mantém até hoje?
O gosto de aventura e sonho, que flutua em todos que escolheram este chão para cumprir seus destinos e sua vida.
Com informações do Correio Braziliense
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