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O 8º Fórum Mundial da Água, que acontece em Brasília esta semana, é ocasião propícia para fazermos um exercício de reflexão que, a rigor, deveria ser permanente, cotidiano, obstinado: o que nós, seres humanos, fizemos (estamos fazendo) de nossa fonte básica de existência? Quem são os destinatários desta fonte tão fundamental à sobrevivência do planeta? Quem controla o seu uso? Compreendemos, como mantra, que sem água não há vida? Não são perguntas despropositadas, ainda mais quando o dia 22 de março, a ela consagrado, é o Dia Mundial da Vida.

Sabemos é que da natureza que se nutre e é nela que encontra tudo o se que necessita para que o planeta viva bem. Entretanto, o descaso histórico e sistemático da humanidade com o seu entorno ambiental levou-a ao paroxismo presente: o de se ver ameaçada de não mais dispor de seu insumo fundamental – a água. Esta constatação revela a monstruosa dimensão dos desvios éticos e políticos de governos e governantes, que resultaram na edificação de um sistema econômico internacional que privilegia o lucro e a ganância acima de todos os demais valores – inclusive a própria vida. Um sistema, em suma, irracional. Suicida.

O resultado é perceptível, tanto que a discussão agora gira em torno da existência ou não de alguma possível reversão nesse quadro catastrófico, em que danos importantes estão ocorrendo em velocidade insuperável. Os cientistas informam há tempos das catástrofes ambientais que tais condutas estão construindo para as gerações futuras – e não só para as futuras.

Há previsões detalhadas e consistentes dando conta dos efeitos sobre a Terra – e sobre a vida de cada um de nós – dos desequilíbrios ambientais já perpetrados. O aquecimento do clima, a perfuração da camada de ozônio, os desmatamentos, a poluição das nascentes, o acelerado degelo das calotas polares, o televisionado assassinato do Rio Doce pela mineradora Samarco, a não-clandestina contaminação da Amazônia pela mineradora norueguesa, são exemplos do que se poderia chamar de “crônica de uma tragédia anunciada”.

O Apocalipse de São João, já anteviu problemas no futuro da humanidade decorrentes do mau uso desse inestimável bem natural. Naquele documento bíblico, o apóstolo advertia para o envenenamento das águas dos rios e dos mares como um dos fatores das tragédias que prenunciava um futuro impreciso. Tal “profecia” se assemelha muito ao que pode acontecer em poucos anos, caso não haja uma reação consistente de governos e organizações da sociedade civil em todo o planeta. É preciso que nos conscientizemos de que a Terra, mesmo possuindo enorme quantidade de água, dispõe de relativamente pouca para o atendimento às necessidades humanas.

O Brasil é um país com enorme potencial hídrico. Possui 12% da água potável do planeta. Mas, apesar disso, também aqui há os “sem-água”, contingentes populacionais inteiros privados do acesso a esse bem fundamental. Quase metade da população brasileira está excluída. Como reverter esse quadro? O caminho, penso, é conscientizar cada vez mais a população para a preservação do seu habitat. Organizá-la. Estimular a sociedade civil a agir, a se estruturar para reclamar a preservação desse direito fundamental à existência.

Esta é sem dúvida uma das causas mais importantes para qual devemos lutar, pois esta trata da vida – da continuidade da vida no planeta. Na Campanha da Fraternidade de 2004, a CNBB adotou o tema “água, fonte de vida”. E propôs a criação de uma lei do patrimônio hídrico brasileiro, que dê ênfase ao conceito da água como bem público, de resto um princípio constitucional. A proposta continua à espera de atendimento. Considerar a água como bem público implica repensar o uso privado que se faz, direta ou indiretamente, dos recursos hídricos.

Mas este não é o caminho proposto. A ordem a adotar é privatizar e transferir a água para o patrimônio pessoal dos grandes grupos econômicos, como já iniciado através dos processos de venda das companhias estaduais de água e esgoto. Também assim indica o recente encontro do presidente “plantonista” Michel Temer com o presidente da Nestlé, o belga Paul Bulcke, em Davos, na Suíça. E na mesma corrente patrimonialista navega pelo Senado o PLS 495/2017 que propõe a criação do “mercado privado da água”. O projeto de lei, em resumo, diz que a “água será destinada a quem possa ela comprar”.

Há estudiosos que advertem inclusive que a escassez da água poderá ser o motivo da próxima guerra mundial. Entretanto os governantes e os grupos econômicos ainda resistem em com ela relacionar-se de maneira honesta, equilibrada, sustentada, observando-lhe as leis naturais, adotando práticas elementares e sensatas de manejo. É que a ganância é descuidada, míope. Não enxerga à distância. Cuida do imediato e não percebe os danos que ocasiona a si mesma. No Brasil, infelizmente, os governantes seguem compreendendo a água como bem privado, instrumento de favores econômicos e acertos eleitoreiros. E enquanto está danosa prática nadar de braçadas no mundo da insensibilidade política, o acesso à agua seguirá considerado um “direito que escoa pelo ralo”.

* Cézar Britto é advogado e ex-presidente nacional da OAB.

Jornalista

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