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Mulheres negras estão ‘à deriva’, diz diretora de ONG; 6 a cada 10 lares chefiados por pretos ou pardos enfrentam insegurança alimentar

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A cada 10 lares chefiados por mulheres ou por pessoas negras de ambos os gêneros, 6 têm algum tipo de restrição de acesso a alimentos, de acordo com pesquisa da Rede PENSSAN. Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha é celebrado nesta segunda (25)

Filas por comida na Lapa, região central do Rio, em 2020 — Foto: Marcos Serra Lima – G1

Desde o início da pandemia de Covid-19 no Brasil, a diretora do Quilombo Casa Akotirene, Joice Marques, notou uma diferença no tipo de público que passou a procurar sua organização, localizada no bairro Ceilândia Norte, no Distrito Federal. Inaugurada em 2018, a casa começou os trabalhos com foco em atividades culturais voltadas para a comunidade – que é majoritariamente negra.

No entanto, com o começo da pandemia, conta Joice, que também é produtora cultural e educadora, moradores da região passaram a procurar a casa em busca de ajuda para acessar alimentos e itens de higiene pessoal. E mesmo com a queda no desemprego – em maio, o país registrou a menor taxa desde o trimestre encerrado em janeiro de 2016 –, a Casa Akotirene segue arrecadando e doando alimentos. De acordo com a diretora, a maior parte das famílias atendidas são chefiadas por mulheres negras que são mães solo.

“São realidades bem duras. São mães de quatro, cinco crianças, algumas delas são crianças especiais, mas falta creche, atenção à saúde, educação, emprego e renda. A gente tem buscado potencializar a oferta de cursos, atividades de formação e capacitação para romper essa estrutura”, explica.

Para Joice, as mulheres negras “hoje se encontram nesse lugar muito à deriva, nessa corda bamba”. No Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, comemorado nesta segunda-feira (25), os dados mostram que o que Joice percebeu na prática se reflete nas estatísticas.

Segundo o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan), a cada 10 lares chefiados por mulheres ou por pessoas negras de ambos os gêneros, 6 têm algum nível de insegurança alimentar, de acordo com a pesquisa. Entre famílias chefiadas por homens, independentemente de raça, o índice é de 53,6%; entre lares chefiados por pessoas brancas, é de 46,8%.

O levantamento, capitaneado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), foi feito nos 26 estados e no DF, tanto em áreas urbanas quanto rurais. Foram entrevistados 35.022 indivíduos em 12.745 domicílios, entre novembro de 2021 e abril de 2022.

De acordo com estudo da Rede de Pesquisa Solidária em Políticas Públicas e Sociedade, as mulheres negras que têm ocupações na base do mercado de trabalho foram o segmento da sociedade que mais morreu de Covid-19 em 2020.

Elas também foram as mais afetadas pela recessão gerada pela pandemia – mais presentes em setores não essenciais e sem vínculos formais de trabalho, muitas mulheres negras perderam parte significativa de sua renda durante a pandemia.

Crianças participam de atividade no Quilombo Casa Akotirene, em Ceilândia (DF) — Foto: Divulgação

As taxas de desocupação e de subutilização (situação em que a pessoa trabalha por menos horas do que gostaria) deste grupo, por exemplo, são maiores do que as verificadas entre mulheres não negras, segundo dados da PNAD Contínua do 2º trimestre de 2021, do IBGE, analisados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Em rendimentos médios no mesmo período, as mulheres negras recebiam 46,6% da remuneração de homens não negros.

Uma das consequências da combinação desses fatores é a insegurança alimentar.

A economista e titular da cátedra Josué de Castro da USP, Tereza Campello, entende que os efeitos negativos da pandemia sobre fatores como renda, acesso a empregos e a políticas públicas têm sido mais graves entre pessoas negras, mas ressalta que a situação de maior vulnerabilidade das mulheres negras não é nova. “Piorou muito [a situação das mulheres negras], mas já era uma característica da situação da fome no Brasil em outros momentos da história”, pondera.

Fome passou por ‘nacionalização’

Para Tereza Campello, a volta do país ao mapa da fome se deveu a uma escolha política e não foi causada pela pandemia. “Em 2018, dois anos antes da pandemia chegar, o Brasil já tinha invertido os principais indicadores de segurança alimentar”, diz.

Na visão da pesquisadora, este caminho começou a ser trilhado em 2016, quando foi aprovado o teto de gastos. De lá para cá, uma série de políticas públicas que poderiam mitigar a situação deixaram de existir ou funcionar, “justamente no período em que a pobreza aumentou, que a vulnerabilidade aumentou”.

Mulheres e crianças participam de atividade no Quilombo Casa Akotirene, em Ceilândia (DF) — Foto: Divulgação

Para a professora, a situação que o país atravessa hoje tem algumas diferenças em relação a crises anteriores. Hoje, diz, a fome passou a ser um fenômeno nacionalizado. Se antes o problema era localizado em algumas regiões, hoje está presente em todo o país.

Como exemplo, ela cita a pequena diferença em números absolutos de pessoas que vivem em situação de insegurança alimentar grave no Nordeste (12,1 milhões) e no Sudeste (11,7 milhões), de acordo com o II Vigisan.

“Se você olhasse esse dado na década de 1980, 1990, essa situação não teria essa mesma peculiaridade”, afirma, ressaltando que proporcionalmente a fome segue mais grave no Norte e no Nordeste.

Questionada sobre o que o país pode fazer para enfrentar a crise da fome, a professora faz avaliação semelhante à de Joice: é preciso uma rede de políticas integradas de proteção social, que incluam a oferta de alimentos saudáveis, a ampliação da renda da população, a geração de empregos e a retomada de medidas de inclusão que foram abandonadas nos últimos anos.

Na opinião da professora, o país não pode esperar 2023 para resolver o problema. “A gente precisa começar agora a reverter esse quadro, investir em políticas públicas. Isso não é gasto. As pessoas tratam como gasto de saúde, educação, assistência social, alimentação escolar – isso é um investimento”, afirma.

‘Meritocracia’

Para Kelly Quirino, professora e pesquisadora de relações raciais da Universidade de Brasília (UnB), historicamente as mulheres negras são as mais fragilizadas e ficam na base da pirâmide social em razão do racismo, do patriarcado e do capitalismo.

Com a pandemia, o cenário ficou ainda mais grave. “Muitos postos de emprego acabaram. A gente já estava em um contexto de desemprego altíssimo e com a pandemia essa questão piorou muito e fez com que as pessoas negras acabassem se contaminando mais porque tiveram que sair de casa para os trabalhos informais como camelô e de doméstica”. explica.

A falta de políticas públicas que permitam que as mulheres consigam emprego e cuidar dos filhos também é um fator que, segundo Kelly, faz o ciclo de vulnerabilidade se repetir.

“Quem é rico continua mais rico e quem é pobre sofre cada vez mais. Cada vez mais os trabalhos ficam precarizados. O racismo que estrutura essa ordem das coisas as prejudica, mas tem que levar em consideração também o sexismo e o classismo. É um ciclo de violência que se repete. Se ela teve uma vida com pouca educação, sem saúde e moradia, os filhos tendem a reproduzir isso”, explica.

Ela critica ainda a chamada “meritocracia”.

“Muitos olham o negro na rua como vagabundo, como quem não quer trabalhar. A questão da meritocracia é perversa, porque parte do pressuposto que se a pessoa se esforçar ela vai conseguir, mas ninguém pensa que o negro não sai da mesma linha de largada. O estado não dá condições, há muita insegurança alimentar, um lar ou rua violenta. Como se pode sonhar com um futuro se tudo ao redor é precário, é ausência?”, analisa.

‘Marginalizados pelas políticas públicas’

Entre as mulheres da Casa Akotirene está Zilda Bahia de Oliveira, de 54 anos. No início da pandemia de Covid ela viu a fome bater à porta, foi quando conseguiu ajuda da ONG com cestas básicas, além de apoio psicológico.

“Cheguei a não ter nada em casa. Fazia cuscuz com ovo quase todos os dias e sofria calada”, diz. Zilda lembra que na infância, após a morte do pai, a mãe dela teve que cuidar sozinha dos 10 filhos. Foram muitos dias sem ter o que comer em casa.

“A gente ia para a Ceasa [Central de abastecimento] pegar frutas e verduras que as pessoas jogavam fora e também pegávamos osso para comer em um mercado. Hoje quando eu vejo as reportagens de pessoas na fila do açougue para pegar osso me dói muito porque eu lembro o que eu passei”, diz.

Quando a mãe conseguiu emprego de cozinheira foi que Zilda e os irmãos passaram a se alimentar um pouco melhor.

“A gente esperava ela chegar para poder comer. Ela trazia comida pronta dentro de sacos e então a gente comia, mas tínhamos que deixar um pouco para o café da manhã e almoço do dia seguinte”, conta Zilda.

A mãe retornava do trabalho às 23h, por isso, como os filhos eram pequenos demais, ela não conseguia garantir que eles fossem para a escola porque não tinha ninguém para levá-los ou buscá-los. Os maiores cuidavam dos menores.

Zilda foi alfabetizada depois de adulta. Recentemente, ela conseguiu finalizar o Ensino Médio e, agora, pretende estudar para ser técnica em gesso ortopédico. “O racismo, a desigualdade afetam mais a classe negra e aqueles que não têm estudo. Eu vou conseguir vencer”, garante.

Em 2023, Joice espera que a casa volte a focar em atividades culturais e sociais. “A gente não quer ficar entregando cesta básica, isso não é o nosso propósito. Isso só mostra o quanto nós estamos marginalizados pelas políticas públicas. A gente quer que os nossos não precisem de cesta básica, que consigam ter seu trabalho, seu emprego, que os jovens tenham estudo e fiquem longe da violência”, diz.

“Enquanto a estrutura não muda, a gente vem construindo”, finaliza.

Fonte: g1 DF

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Jornalista

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