Homônimo da lei, projeto Maria da Penha atende moradoras de Ceilândia há mais de dez anos. 25 de novembro marca luta contra violência às mulheres
Mulheres vítimas de violência têm acompanhamento jurídico e psicológico
Aos 15 anos de idade, Vera da Silva iniciou uma relação conjugal abusiva que perduraria por 50 anos em sua vida. Desde o início, ela era agredida pelo companheiro, 25 anos mais velho. Devido à dependência financeira e a ameaças constantes, Vera suportava a situação sozinha e sem apoio familiar. Hoje, aos 65 anos de idade, ela teve coragem de pedir ajuda e está buscando seus direitos na Justiça.
A pedido da própria fonte, o nome utilizado para identificá-la é fictício, mas sua história é verdadeira e pode chocar ainda mais: o agressor de Vera é seu próprio irmão. Esse enredo dramático poderia ser roteiro de ficção, mas retrata a vida de uma moradora de Ceilândia que, como centenas de mulheres, passaram pelo projeto Maria da Penha.
Capitaneado pela Faculdade de Direito (FD) da UnB, desde 2007 o projeto oferece atendimento jurídico e psicológico a vítimas de violência doméstica e familiar. O Departamento de Psicologia Clínica (DPC) do Instituto de Psicologia (IP) também está envolvido. Os atendimentos acontecem aos sábados no Núcleo de Práticas Jurídicas (NPJ) de Ceilândia, região com maior índice de violência doméstica do Distrito Federal. O atendimento é restrito a habitantes daquela unidade administrativa.
O contexto de criação do projeto passa pela própria lei nº. 11.340/2006, que instituiu mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Conhecida como Lei Maria da Penha, a norma implantou uma série de medidas de proteção a vítimas em situação de vulnerabilidade em relação ao seu agressor, seja ele da família ou pessoa próxima de seu convívio.
Um artigo importante da lei, até então inédito, assegurou assistência jurídica a vítimas de violência doméstica. “À época, o réu do processo tinha a Defensoria Pública para sua defesa, o que não acontecia com as mulheres. Atualmente, há na defensoria uma seção específica para elas”, expõe a coordenadora do Maria da Penha, a procuradora e professora de Direito Ela Wiecko.
“Em geral, a cobertura da imprensa ressalta o aspecto punitivo, mas o forte da lei é justamente a perspectiva jurídica para as vítimas”, complementa. O projeto da UnB foi uma das primeiras ações que atendeu a essa prescrição legal. Dentre as medidas penais que fortaleceram o combate a estes crimes, a jurista destaca duas: o aumento da pena para lesão corporal e a possibilidade de prisão preventiva.
ATENÇÃO E PROTEÇÃO – O diferencial do projeto Maria da Penha é a interdisciplinaridade, que possibilita tanto o atendimento jurídico como o psicológico. “Nossa atuação é integrada. A pessoa é atendida ao mesmo tempo pelos dois tipos de profissionais”, explica Ela Wiecko. De acordo com a docente, o trabalho em conjunto é importante para que a mulher não tenha de repetir sua história várias vezes.
Além disso, o foco das atividades é a horizontalidade nas relações com as vítimas que são assessoradas pela equipe. “Nada é imposto, nós orientamos e indicamos os caminhos, mas elas escolhem se vão entrar ou não com uma ação.”
Em razão da complexidade de fatores envolvidos, a decisão é sempre das mulheres. “São elas que sabem o melhor momento para tomar uma atitude, pois há muitas questões para serem consideradas, como as relações afetivas e o envolvimento dos filhos”, afirma a jurista.
“Com a reflexão que propomos, colocamo-nos à disposição para que elas possam contar com uma rede de apoio e romper o ciclo de violência”, acredita. Nesse sentido, o principal impacto é o empoderamento das mulheres.
ACOLHIMENTO – A cada ano, são realizados cerca de 500 atendimentos. A dinâmica do encontro acontece em duas etapas. Em um primeiro momento, é promovida uma roda de conversa com todas as assessoradas, de forma coletiva. “É um espaço de partilha e de solidariedade, cumprindo um papel didático e formativo”, considera a advogada Sônia Maria Alves.
Doutoranda em Direito pela UnB, Sônia Alves é uma das voluntárias e já está envolvida no projeto há dois anos. “Como feminista e militante de direitos humanos, entendo que nossa missão é ouvir as histórias e os relatos, seguindo os preceitos da assistência jurídica popular”, pontua.
Após a roda de conversa, o atendimento é individualizado, tendo a participação das duas áreas. “Tudo é feito com muita tranquilidade, não é aquela conversa com pressa, buscamos esclarecer caso a caso”, garante. A advogada conta que nas situações que precisam de certa urgência, há também assessoria por outros meios. Contatos mais frequentes no decorrer da semana, por exemplo, não estão descartados. Mas nem todos os atendimentos são contínuos. “Muitas vezes, recebemos mulheres que buscam apenas sanar uma dúvida específica.”
A professora de Psicologia Gláucia Diniz destaca a atenção despendida pelo projeto no diálogo com as mulheres. “Mostramos que todas merecem uma vida conjugal livre da experiência de abusos, maus tratos, e que nenhuma forma de violência deve ser consentida ou banalizada.”
Atualmente, a equipe do projeto conta com 30 pessoas, entre estudantes e profissionais voluntários do Direito e da Psicologia. “Fazemos semestralmente capacitação para aqueles que atuam no projeto, buscando focar nas questões de gênero e tendo a preocupação com uma linguagem inclusiva”, diz Sônia.
“É preciso evitar estereótipos. Não podemos, por exemplo, reforçar a maternidade como sendo papel único da mulher”, aponta Ela Wiecko. Além disso, a docente assegura que o atendimento é bastante técnico, sem julgamentos morais e juízos de valor.
IMPASSES – Doze anos após a assinatura da Lei Maria da Penha, os dados sobre a violência contra a mulher ainda são preocupantes. A Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 –, administrado pelo Ministério dos Direitos Humanos (MDH), registrou quase 80 mil denúncias no primeiro semestre de 2018.
Em agosto de 2017, o Instituto Maria da Penha (IMP) lançou o site Relógios da Violência, que faz uma contagem do número de mulheres que sofrem qualquer tipo de violência, física ou moral, no Brasil. A plataforma foi desenvolvida como parte de campanha para alertar sobre o número de casos no país. De acordo com a página, a cada 7.2 segundos, uma mulher é vítima de violência física.
Além dos números preocupantes, o sistema judiciário ainda é limitado. “Os maiores índices de violência estão na periferia, mas atualmente só há uma delegacia especializada da mulher em todo o DF, e que funciona na Asa Sul”, lamenta a professora Wiecko. Embora haja nas delegacias setores especializados, o atendimento é precário. “Em algumas não se consegue fazer o registro. Outras fecham à noite”, observa.
Na visão da procuradora, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fez uma interpretação equivocada da Lei Maria da Penha. “O Conselho entende que crime é com juizado de violência doméstica familiar e civil, a vara de família. Muitas vezes, as instâncias tomam decisões contraditórias.”
Um exemplo é quando a mulher tem assegurada medida protetiva contra o marido, mas o juiz da vara de família determina a guarda compartilhada dos filhos do casal. Nesse caso, a vítima estará exposta ao agressor. “Ainda são necessários muitos avanços em todo o sistema de Justiça. A rede de proteção precisa ser ampliada”, defende.
SUPERAÇÃO – Após quase dois anos de convívio com o agressor, Olívia Santos procurou atendimento do projeto Maria da Penha. Ela conta que foi humilhada, não só pela sociedade, mas também pela própria família. “Ainda há muita discriminação e as pessoas têm a mente fechada, com aquela visão de família tradicional, onde a mulher deve suportar tudo”, diz.
Na primeira agressão que sofreu, Olívia afirma que não estava preparada para reconhecer o problema. Com o tempo, o quadro foi se agravando. “Quando a gente não tem trabalho e tem filho, fica mais difícil. Mas o primeiro passo é sair dos braços do agressor e denunciar”, aconselha.
É com esse mesmo espírito que Vera da Silva, cuja história foi apresentada no início desta reportagem, acredita que é possível vencer. “Ele mudou muito, hoje não me bate mais. Antes eu nem podia sair na rua e falar com alguém.”
Com um processo patrimonial em andamento, Vera está separada, mas ainda mora com o ex-companheiro, atualmente um idoso de 90 anos. “Eu era muito nova, praticamente não sabia quase nada. Mas não podemos ter medo. Eu não precisava ter passado por todo esse sofrimento”, reconhece.
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