Uma dupla homenagem no DF
Pedra Fundamental de Brasília foi palco da celebração do centenário da Independência e serviu de marco para a construção da futura capital
Era 27 de agosto de 1922 quando Ernesto Balduíno de Almeida, diretor de uma estrada de ferro em Goiás, recebeu um telegrama que lhe encarregava de uma missão difícil e que ficaria para sempre registrada na história do país. O ministro da Viação e Obras Públicas, José Pires do Rio, ordenou que o engenheiro erguesse um monumento na imensidão inóspita do Planalto Central e que a obra estivesse pronta para que, exatamente ao meio-dia do dia 7 de setembro daquele ano, fosse celebrado, no local, o centenário da Independência do Brasil.
Fazia 30 anos que o pesquisador e engenheiro belga Luís Cruls havia visitado o Planalto Central e definido um quadrilátero onde se firmaria a futura capital federal. O presidente da República em 1922, Epitácio Pessoa, decidiu então realizar uma construção na região proposta por Cruls, na intenção, também, de acelerar as preparações para a transferência da sede do poder para o interior do país.
Faltavam 11 dias para o Dia da Independência e Balduíno estava na cidade mineira de Araguari, distante cerca de 400 quilômetros do futuro Distrito Federal. Na época, o DF era apenas um conglomerado de grandes fazendas, com a presença de uma pequena vila com menos de três mil habitantes, que hoje é a região administrativa de Planaltina.
O prazo era escasso, e o diretor tinha em suas mãos uma missão patriótica para realizar, a qual não deixava aberturas para falhas, já que se atrasasse em um dia, perderia o simbolismo de inaugurar o monumento no centenário do Grito do Ipiranga. Em seu diário de expedição, Balduíno se recorda da urgência em que havia aquela demanda do Governo Federal. “Faltava-me tempo para pensar; para agir ainda pouco era o tempo”, registrou.
Correndo contra o relógio, a equipe de Balduíno confeccionou um obelisco em formato de pirâmide feito com 33 pedras e decidiu montar o monumento apenas quando chegassem ao seu local fixo. No dia 1º de setembro, quando a placa que fundamentava a futura fundação de Brasília chegou de São Paulo para Araguari, a equipe começou a sua épica saga pelo Cerrado.
Não foi fácil vencer aquele trajeto. Os caminhões que levavam as pedras, a comitiva e os seus mantimentos paravam ocasionalmente ante a densa natureza, sendo necessário muito esforço da equipe para vencer os diversos obstáculos que encontravam pelo caminho. Somente no dia 3 de setembro a equipe de Balduíno chegou a Planaltina, onde ficariam hospedados no atual Hotel Casarão, que até hoje existe na Praça Salviano Guimarães e encanta pela sua bela arquitetura colonial.
Após estudos realizados no dia 4, a comitiva enfim decidiu onde seria fixada a Pedra Fundamental. Balduíno escolheu dois morros distantes 7,5 km de onde estavam hospedados, e nomeou-os como “Centenário” e “7 de Setembro” além de batizar toda a região como a “Serra da Independência”.
Às 17 horas do dia 5, os materiais estavam descarregados no Centenário. A Pedra Fundamental ficou pronta em cima da hora, tendo a sua preparação finalizada às 10 horas do dia 7, faltando apenas duas horas para o prazo final estabelecido pelo presidente Epitácio Pessoa. A comitiva havia conseguido completar a sua viagem, o imponente obelisco de 3,75 metros de altura estava instalado no alto da imensidão do Planalto Central, e Balduíno e sua equipe estavam prontos para entrar na história do país.
Ao meio-dia do dia 7 de setembro de 1922, a equipe de Balduíno, representantes locais e moradores a cavalo celebravam a inauguração da Pedra Fundamental da futura capital interiorana. Na placa do obelisco, o presidente Epitácio Pessoa afirmava que ali seria construída a nova sede do poder brasileiro, e que de fato aconteceu, mas em outro local, 38 anos depois.
“Sendo Presidente da República o Excelentíssimo Senhor Dr. Epitácio da Silva Pessoa, em cumprimento ao disposto no decreto n.º 4.494 de 18 de janeiro de 1922, foi aqui collocada em 07 de setembro de 1922 ao meio-dia, a Pedra Fundamental da Futura Capital Federal dos Estados Unidos do Brasil”.
Segundo o historiador Adirson Vasconcellos, ao meio-dia daquele 7 de setembro de 1922, Ernesto Balduíno começou a içar a bandeira do Brasil, enquanto que o Hino Nacional era executado por uma bandinha de Planaltina, acompanhada pelos clarins de um batalhão do Exército. Ao final daquela solenidade, foram servidas taças de champanhe. De certa forma, aquele dia brindou-se à futura construção de Brasília.
Uma data marcante
O centenário da Pedra Fundamental é uma data marcante para o historiador planaltinense Mário de Castro, que é neto de Viriato de Castro, um dos principais personagens da expedição que viabilizou o monumento. Com 15 anos, Viriato foi guia da missão de Luis Cruls, que demarcou o futuro território da capital federal, e também foi essencial para que a solenidade no Morro do Centenário pudesse acontecer.
A Pedra Fundamental foi fixada em um terreno próximo da Fazenda Rajadinha e da Fazenda Velha, que eram de posse de Viriato, que herdou as áreas de seu pai. Segundo Mário, um dos motivos para que a comitiva de Balduíno escolhesse o local foi o contato dos viajantes com o seu avô, que também auxiliou a equipe na inauguração do obelisco. “Ele era uma pessoa que se achava aventureiro nessas fazendas todas do pai dele. Ele fazia o tour dele de uma fazenda a outra, cuidando de vaca, cuidando de boi”, afirma.
De acordo com o seu neto, Viriato era um “mudancista ferrenho”, defendendo a construção da capital no Planalto Central ao longo de toda a sua vida. Após ser uma presença importante em dois momentos fundamentais para que Brasília pudesse se tornar uma realidade, ele chegou a ver a inauguração da cidade em 1960, falecendo no ano de 1965. “Ele era amigo do Juscelino, ele esteve com ele”, relembra Mário.
Marco do sonho que se tornou Brasília
Segundo Adirson Vasconcelos, professor, historiador e pioneiro brasiliense, a ideia da construção da Pedra Fundamental no centenário da Independência surgiu também como uma forma de se homenagear Tiradentes, líder da Inconfidência Mineira no final do século XVIII e um personagem importante para a emancipação do Brasil, que já naquele tempo sonhava com uma capital no interior do país.
“Epitácio Pessoa lembrou-se da figura de Tiradentes e, em 7 de setembro de 1922, ele fez estabelecer que o projeto de futura capital do Brasil no interior, como sonhado pelos inconfidentes, também estivesse presente nas comemorações do centenário da Independência”, conta o historiador.
De acordo com Vasconcelos, que é autor do livro Mudança da Capital, que relata todos os detalhes da saga que inaugurou o monumento no Planalto Central, Balduíno de Almeida foi um exemplo de patriotismo e de fervor lancinante pela mudança da capital federal para o interior do Brasil. Para ele, o engenheiro deveria receber homenagens pelo seu feito realizado há exatos cem anos.
“Ele se destacou pelo seu esforço patriótico para realizar esta missão. Se houvesse um Panteão dos Heróis de Brasília, o engenheiro Balduíno deveria ter reverenciado a sua dedicação e a sua abnegação. Ele largou tudo para construir este monumento, que foi de sua própria autoria, e no prazo marcado”, conta.
Porém, o historiador observa que, ao longo destes 100 anos, a Pedra Fundamental não recebeu a preservação que merecia pelos governos locais. Em novembro do ano passado, o monumento foi alvo de 17 disparos de arma de fogo, sendo que alguns atingiram a placa original de 1922. “Causa uma certa tristeza, parte a um abandono em que este monumento foi sempre relegado. Na minha visão, o monumento com esta envergadura mereceria um atendimento mais preciso e mais físico das autoridades”, lamenta Vasconcelos.
Historiadores explicam escolha do local
Ao longo destes cem anos de história da Pedra Fundamental, um mito sobre a saga de Balduíno de Almeida se criou envolvendo a construção de Brasília. De acordo com a lenda, o chefe da expedição decidiu colocar o monumento próximo de Planaltina por não ter mais tempo disponível para ir até as regiões próximas de onde hoje está o Plano Piloto.
Mas, segundo Adirson Vasconcelos, não há nenhum documento da época ou testemunhas que comprovem o dito popular que, “pela pressa”, Balduíno decidiu colocar a Pedra Fundamental no Morro do Centenário por estar próximo da cidade onde estavam hospedados. Conforme explica o historiador, o local foi escolhido milimetricamente pelo engenheiro por ser o maior morro nos arredores do assentamento urbano mais numeroso e importante da região.
“Aquela região era muito conhecida, e decidiram colocar no morro de maior destaque do lugar. Foi justa a ideia de Balduíno e de todos que atuaram no processo de colocação da Pedra Fundamental, em erguer o monumento na região de Planaltina”, afirma o historiador.
O mito surgiu devido a uma realidade que poucos brasilienses conhecem. De acordo com Adirson, no início do planejamento da mudança da capital para o Planalto Central, a região de Planaltina era a que tinha o maior potencial para sediar a sede da República. Isso só mudou com as últimas expedições geográficas feitas antes da construção liderada por Juscelino Kubitschek, que definiram que Brasília seria instalada onde hoje está.
De acordo com o historiador Mário Castro, em 1954, os moradores de Planaltina convenceram uma das últimas comissões para a definição da localização da nova capital, liderada pelo Marechal José Pessoa, que Brasília deveria ser fundada em sua região atual, levando a comitiva até uma mata densa de Cerrado, onde hoje está o Eixo Monumental e os seus grandiosos monumentos arquitetônicos, como o Memorial JK.
“Os políticos, comerciantes, fazendeiros e personalidades de Planaltina levaram o marechal José Pessoa para o local que hoje é o Memorial JK. Por isso, surgem as histórias de que a Pedra Fundamental deveria ser colocada no Torto, para poder justificar a escolha daquela área para construir Brasília”, explica Castro.
Fonte: Jornal de Brasília
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