8 perguntas para entender avanço das ‘narcomilícias’ que agrava crise de segurança no Rio
Segundo especialistas, nova crise de segurança pública têm relação com mudanças recentes na geografia e no comportamento do crime organizado no território fluminense.
Ônibus incendiado no Recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro – (crédito: Getty Images)
A crise na segurança pública do Rio de Janeiro teve um novo capítulo na tarde de 23 de outubro, com o ataque de criminosos a 35 ônibus e um trem, todos incendiados.
A polícia atribuiu os atos a um protesto de criminosos contra a morte de um miliciano em ação da Polícia Civil naquele mesmo dia.
Segundo especialistas entrevistados pela BBC News Brasil, os acontecimentos têm relação com atividades de milícias em áreas pobres e com mudanças recentes na geografia e no comportamento do crime organizado no território fluminense.
Grupos paramilitares originalmente criados por policiais, as milícias dominam dezenas de comunidades nas zonas oeste e norte da capital, além da Baixada Fluminense e em cidades da região leste do Estado, como São Gonçalo e Itaboraí.
Em anos recentes, alguns desses grupos racharam e se associaram ao tráfico, o que mudou inclusive sua forma de agir. O ataque violento contra o transporte público – o maior de que se tem notícia no Estado – era prática comum de traficantes, não de milicianos, observam pesquisadores do setor.
“A milícia mudou”, explica o coronel da reserva da Polícia Militar Robson Rodrigues, que foi chefe do Estado-Maior da corporação e coordenador das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e é doutor em ciências sociais e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-UERJ).
“O Comando Vermelho mudou, a milícia mudou, e um grupo começou a absorver o aprendizado e técnicas e estratégias do outro”, afirma.
“Então, você vê a milícia hoje traficando, se envolvendo com operações, e o tráfico de drogas se envolvendo na exploração de serviços e explorando a população. Hoje tem uma linha que separa essas duas fronteiras, mas elas diminuíram”, prossegue o pesquisador.
Um dos pontos criticados por pesquisadores foi o fim da Secretaria de Segurança (Seseg), no início de 2019, por iniciativa do então governador Wilson Witzel (PSC). A medida foi mantida por seu sucessor, o atual governador, Cláudio Castro (PL).
Por meio de sua assessoria, Castro afirmou à BBC News Brasil que atribuir ao fim da Seseg a atual crise é uma “análise rasa”. Leia no fim desta reportagem a íntegra das declarações de Castro à BBC News Brasil sobre as críticas feitas por especialistas nesta reportagem.
Com base em entrevistas com especialistas, a BBC News Brasil elaborou perguntas e respostas que ajudam a explicar o novo cenário da violência no Rio.
1. Quais são as novidades no cenário da violência no Rio?
Parte da mudança se deve à entrada de traficantes na guerra que rachou a maior milícia do Rio na zona oeste. Mas a crise é alimentada também por outros fatores, inclusive políticos.
Um deles, segundo especialistas, foi o fim, em 2019, da Secretaria de Segurança – uma decisão que, de acordo esses analistas, buscava atender a compromissos políticos com as polícias.
Especialistas em segurança pública criticam a medida, que teria desmantelado políticas de planejamento e de metas e levado as polícias de volta ao passado.
Segundo eles, hoje as corporações estão isoladas e trabalham em operações com foco na “visibilidade”. São, dizem, incursões espetaculosas em comunidades, por exemplo, mas que têm pouco resultado por não abalarem a estrutura do crime organizado, segundo pesquisadores da área de segurança.
“Houve muito retrocesso, ou seja, (uma volta) às muitas formas antigas que já foram adotadas anteriormente e não deram certo”, diz Rodrigues.
Ele afirma ainda que faltam investimentos na reforma do aparato policial e na eficiência das corporações.
Jacqueline Muniz, antropóloga e professora de Segurança Pública na Universidade Federal Fluminense (UFF), tem crítica semelhante.
“Ninguém faz polícia, foi todo mundo fazer operação, porque fazer operação é a única dimensão visível que o cidadão desesperado por segurança reconhece”, explica ela. “É algo que dá poder, prestígio.”
2. Quais acontecimentos antecederam os ataques a ônibus desta semana?
O ataque que resultou no incêndio de 35 ônibus e um trem em oito bairros do Rio de Janeiro na semana passada foi o ponto culminante de uma sequência de episódios especialmente violentos na cidade ao longo dos últimos 30 dias.
Em 24 de setembro, o programa Fantástico, da Rede Globo, exibiu imagens de traficantes recebendo treinamento militar com fuzis em uma área de lazer no Complexo da Maré, conjunto de favelas na zona norte carioca.
Três dias depois, ladrões lançaram uma granada contra um ônibus, cujos passageiros tinham acabado de assaltar, na Avenida Brasil, na altura de Barros Filho, na zona norte. Três pessoas ficaram feridas.
Uma semana depois, na madrugada de 5 de outubro, quatro médicos que bebiam cerveja em um quiosque em frente ao Hotel Windsor, na Barra da Tijuca, foram assassinados a tiros por desconhecidos que chegaram em um carro. Três deles morreram.
O motivo, para policiais, foi a semelhança física de uma das vítimas com um criminoso rival dos atiradores – há uma guerra de quadrilhas pelo controle da zona oeste da cidade.
Algumas horas depois, quatro suspeitos do crime foram encontrados mortos – , segundo a polícia, eles foram assassinados por ordem da cúpula da quadrilha, devido ao erro que teriam cometido.
Em 19 de outubro, quatro policiais civis e um advogado foram presos pela Polícia Federal, acusados de terem negociado com traficantes a liberação de 16 toneladas de maconha apreendidas.
A negociação, segundo a Polícia Federal, ocorreu na Cidade da Polícia, complexo de delegacias especializadas na zona norte. Imagens do caminhão carregado com a droga, escoltado por carros da Polícia Civil para ser entregue a traficantes em uma favela, foram divulgadas.
Na mesma data, agentes da Delegacia de Repressão a Entorpecentes anunciaram ter achado, em um carro vazio na Gardênia Azul, oito das 21 armas desviadas de um arsenal do Exército, em São Paulo. Segundo policiais, o armamento provavelmente seria usado na “guerra” da zona oeste.
Um dia depois, nova operação da PF apontou que três policiais civis e um delegado desviaram parte de uma carga de cocaína apreendida. Os quatro foram afastados de suas funções pela Justiça, que também ordenou que usem tornozeleiras.
A morte, em ação policial, de Matheus da Silva Rezende, de 24 anos, conhecido como Faustão e sobrinho de Luiz Antônio da Silva Braga, o Zinho, chefe de uma das milícias em luta pela zona oeste, desencadeou o ataque aos meios de transporte, segundo a polícia do Rio.
3. Como surgiram as milícias?
Os grupos conhecidos como milícias no Rio de Janeiro eram inicialmente formados por policiais civis, PMs, bombeiros, guardas municipais e membros das Forças Armadas. Tinham domínio sobre áreas pobres e agiam sob proteção de políticos – alguns deles, também milicianos.
As milícias ganharam essa configuração no início dos anos 2000, mas suas raízes podem ser rastreadas até à ditadura militar, nos anos 60. Essa era a época dos chamados Esquadrões da Morte, formados por agentes da repressão que assassinavam criminosos comuns na periferia das grandes cidades.
Nos anos 70 e 80, surgiram os grupos de extermínio ou “polícias mineiras”, como eram conhecidos grupos armados de “justiceiros” que agiam nas periferias. Atuavam, muitas vezes, a soldo de comerciantes para matar ladrões e consumidores de drogas ilícitas.
A partir do fim dos anos 90, com o avanço do tráfico, policiais “no desvio” passaram a “vender” segurança nas favelas e comunidades das quais expulsavam traficantes ou que “conquistavam” antes deles.
Da cobrança inicial de “contribuições para a segurança”, que eram impostas a moradores e comerciantes, logo passaram a explorar, diretamente ou por meio de taxas, negócios como venda de gás, água mineral, carvão, transporte por van, venda de imóveis em áreas de proteção ambiental e outros. A representação política, a partir dos votos conseguidos em áreas dominadas por milícias, foi o passo seguinte.
Mais recentemente, milicianos e traficantes se aliaram em bairros das zonas oeste, norte e Baixada Fluminense. Especialistas destacam que, sem a participação ou conivência de agentes do Estado, as milícias não teriam conseguido se instalar nem se expandir.
“São o que chamo de governos criminais”, diz a antropóloga Jacqueline Muniz, da UFF. “Sempre que tem autonomização predatória do poder de polícia, tem um processo de milicianização”, diz ela.
Para Robson Rodrigues, o foco da repressão policial, durante muito tempo, foi conter a facção criminosa Comando Vermelho (CV). O perigo da expansão das milícias foi subestimado. Só uma Unidade de Polícia Pacificadora foi instalada em uma área de domínio miliciano, o Jardim Batam. Mesmo assim, a medida só foi tomada após um episódio no qual jornalistas foram torturados por criminosos.
O pesquisador destaca as mudanças nas milícias, lembrando a aproximação entre milicianos e traficantes – grupos que antes eram inimigos.
“Esse tipo de ação, o ataque a ônibus, era típico do tráfico”, observa. “A milícia era mais discreta.”
Oficial da reserva da PM e mestre em Antropologia, Paulo Storani aponta outra mudança nas milícias: hoje não policiais chegaram ao topo do comando desses grupos.
“Eles sucederam, lá atrás, o miliciano que tomava conta da zona oeste, que conseguiu controlar boa parte do território, e acabou sendo morto. E sendo morto, quem assumiu não era mais um agente do Estado.”
Segundo Storani, esse “novo miliciano” acrescentou a venda de drogas a seu “portfolio de atividades criminosas”.
4. Como surgiu a “guerra” entre milicianos e traficantes na zona oeste do Rio?
Até 2021, a zona oeste da capital fluminense era dominada pelo Bonde do Ecko, novo nome da Liga da Justiça, uma das primeiras milícias do Estado – e a maior delas, com penetração na zona norte e Baixada. Depois que policiais civis mataram o chefe do bando, Wellington da Silva Braga, o Ecko, seu irmão, Luiz Antônio da Silva Braga, o Zinho, assumiu a chefia da quadrilha, de acordo com a Polícia.
Mas Daniel Dias Lima, o Tandera, que integrava a mesma quadrilha, desentendeu-se com Zinho, dividindo a milícia e abrindo uma guerra que já dura um ano e meio, pelo menos.
Tandera domina parte da Baixada Fluminense e investe sobre a zona oeste da capital. Diante da divisão no bando, o Comando Vermelho resolveu investir e se associou a milicianos na região, aprofundando sua penetração em comunidades da região.
5. Qual é o nível de infiltração do crime organizado no Estado do Rio de Janeiro?
Pesquisadores da segurança pública de diferentes correntes em geral destacam a necessidade da ação ou omissão de agentes estatais nas comunidades pobres para que as milícias prosperem. Também costumam destacar ser a proximidade do Estado um dos grandes perigos envolvidos no processo de “milicianização” da segurança.
O motivo é que os milicianos, muitas vezes com passagem pelas forças policiais, têm treinamento, organização e ligações no aparelho estatal, o que os torna mais fortes.
“A gestão do território dá múltiplas vantagens”, explica a antropóloga Jacqueline Muniz, da Universidade Federal Fluminense (UFF).
“Então, para que um grupo criminoso possa sobreviver, possa existir e se expandir, tem que que ter relações com o Estado, diversificação de suas atividades criminais no espaço onde está, no território que domina. Não existe a perspectiva de nenhum grupo criminoso, seja PCC, seja o Comando Vermelho, Terceiro Comando ou milícia, sem parceria ou sociedade com setores do Estado. Nas fronteiras tem sempre um servidor público para atravessar droga, arma, o que você quiser, ou explorar a luz, o gás.”
Rodrigues afirma que o “assédio” do tráfico a policiais, com ofertas de corrupção, se repete.
“O crime organizado hoje está mais sofisticado ainda”, diz. “Está sempre tentando assediar, cooptar.”
Para ele, a prioridade dos governos deveria ser controlar os desvios de policiais. Muitos governos, no entanto, não têm coragem de contrariar suas polícias, segundo o analista.
6. Qual é o risco de “mexicanização” do Rio de Janeiro?
A transformação do Rio em uma versão brasileira de Ciudad Juarez, município mexicano marcado por altos índices de mortalidade, com tortura e decapitação de cidadãos e ampla penetração do Estado pelo crime organização, é uma possibilidade que ronda debates na área de segurança no Brasil.
A capital fluminense ainda não chegou a esse grau de descontrole, mas as cenas de 23 de outubro, quando milicianos incendiaram ônibus ainda com passageiros diante da inação da Polícia, geraram alertas entre quem estuda e pesquisa o setor.
Para Storani, “sem dúvida” há perigo do Rio de Janeiro se “mexicanizar”.
“No México, tem regiões ou províncias onde você não entra sem autorização dos cartéis”, diz ele.
“A gente hoje no Rio de Janeiro já tem algo semelhante em menor escala. Você não vai entrar em qualquer comunidade, você tem um problema em relação àquilo. Então, há sim um processo de ‘mexicanização’. E o que é pior, que acontece no Brasil: essas caras (milicianos) elegem representantes. Da mesma forma que o tráfico.”
Rodrigues vê a possibilidade de “mexicanização” com mais reticências, por causa das diferenças entre os países e o processo de globalização.
“Eu conheci vários outros países aqui, principalmente na América Latina, Caribe, que têm tem algumas semelhanças, mas têm mais distinções do que similaridades. Eu digo que isso aqui é tudo um sistema de vasos comunicantes.”
“Eu não diria ‘mexicanização’, mas eu diria assim: existem regiões da América do Sul e da América Latina, envolvendo o México também, que têm certas características, onde passam essas rotas (de tráfico de drogas), esse comércio bilionário, com impactos em cidades às vezes muito pobres e que têm uma vulnerabilidade social muito grande. Então, isso impacta.”
Segundo ele, a situação do México é mais grave que no Brasil porque, lá, os cartéis se especializaram na exportação das drogas e conseguem retornos superiores às facções brasileiras. Com mais ganhos, os cartéis mexicanos ampliam seu poder bélico, de corrupção etc.
7. As Forças Armadas podem ser usadas na segurança pública do Rio?
Isso já aconteceu outras vezes, durante crises anteriores de segurança no Rio de Janeiro. Desta vez, porém, o envolvimento de militares em ações contra o crime tende a ser menor, segundo posicionamentos recentes de autoridades.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva há algum tempo demonstra reserva em relação à ideia de colocar as Forças Armadas para patrulhar ruas ou para participar de operações policiais. Isso exigira uma Operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).
Até agora, o governo federal admitiu apenas possibilidade de Marinha e Aeronáutica reforçarem seus papéis em ações de combate ao crime já previstas em lei, segundo o ministro da Justiça, Flávio Dino. Seria uma atuação complementar à das polícias do Rio.
Na sexta-feira (27/10), o presidente da República confirmou a jornalistas com quem tomou café da manhã que não haverá Operação de Garantia da Lei e da Ordem no Rio. Há ainda resistência a iniciativas que possam levar para o Palácio do Planalto a crise de segurança fluminense, o que criaria um problema político para Lula.
A relação entre o governo e as Forças Armadas vive momento delicado. Analistas atribuem essas tensões ao papel que muitos militares da reserva e da ativa tiveram no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Alguns desses militares têm sido investigados por suposto envolvimento nos ataques às sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro. Naquele dia, embora instado por pessoas próximas a decretar uma GLO para enfrentar o que considerava uma tentativa de golpe, Lula preferiu ordenar uma intervenção federal civil. Essa medida foi limitada à Polícia Militar do Distrito Federal.
Há ainda há resistência de setores da esquerda representados no governo à participação de militares em ações de Segurança Pública.
8. Qual é o peso da política local na atual crise de segurança do Rio?
Até o fim de 2018, o Rio de Janeiro tinha uma Secretaria de Segurança, à qual as polícias Civil e Militar eram subordinadas. Com a posse de Wilson Witzel (em janeiro de 2019), a Seseg foi extinta, e as duas corporações policiais ganharam secretarias próprias e independentes.
A decisão foi atribuída a uma exigência de policiais civis e militares, que assim ganharam autonomia e passaram ao nível de secretarias, com acesso direto ao governador.
A medida foi criticada por especialistas, mas mantida pelo sucessor de Witzel, Claudio Castro, que se reelegeu em 2022 com o mesmo compromisso de dar autonomia às polícias.
Em declaração por escrito à BBC News Brasil, Castro diz considerar que o fim da secretaria não teve impacto na crise atual no Rio.
“É muito importante a gente lembrar que o primeiro Estado que teve um problema grave (de segurança) esse ano foi o DF, que tinha secretaria de segurança pública”, afirma o governador.
“Depois, percebemos problema no Rio Grande do Norte, tinha secretaria de segurança pública. Logo em seguida, veio o Ceará que tinha secretaria de segurança pública. Posteriormente, a Bahia que, pasmem, também tinha secretaria de segurança pública. Outro dia, São Paulo que também tem secretaria de segurança pública. Eu não creio que o problema de não ter secretaria de segurança pública seja o causador disso, no Brasil inteiro.”
E prossegue:
“Acho que isso é uma análise rasa de quem tem uma opinião só e se firma naquilo como pedra angular. Aqui sempre será aberto ao diálogo. Se a gente perceber que o modelo não está funcionando, podemos mudar sim. Mas, nesse momento, não vejo, até porque quando o Rio de Janeiro precisou de intervenção federal, também tinha secretaria segurança pública. Então, esse não é o motivo de termos crise na segurança”, conclui.
O governador não quis se posicionar sobre as demais críticas feitas por especialistas nesta reportagem, como a de as polícias do Rio estariam empenhadas em operações de “grande visibilidade”, mas com pouco impacto efetivo, e de que faltariam investimentos para modernização das forças.
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