“A democracia prevaleceu”, diz embaixadora dos EUA ao Correio
Chefe da representação norte-americana destaca os valores comuns de Brasil e Estados Unidos e detalha a programação comemorativa do bicentenário da relação entre os dois países. Conta, ainda, bastidores da afinidade entre Biden e Lula
Ao completar o primeiro ano à frente da embaixada dos Estados Unidos em Brasília, Elizabeth Frawley Bagley recorre à expressão inglesa “hitting the ground running”. Em tradução livre, seria o equivalente a dizer que a norte-americana nascida em Washington começou com o pé direito sua missão diplomática. Nesta entrevista ao Correio, Bagley relata os bastidores da relação próxima entre Joe Biden e Lula da Silva, dois presidentes que compartilham a defesa dos direitos dos trabalhadores. A embaixadora detalha o diálogo intenso entre Brasil e Estados Unidos em campos relevantes como G20 e emergência climática. Por fim, mostra-se entusiasmada com o bicentenário das relações entre os dois países. Os Estados Unidos foram, “de longe”, lembra Bagley, o primeiro país a reconhecer a independência do Brasil. Leia, a seguir, os principais trechos da conversa.
Bem, já faz um ano aqui em Brasília, não?
Sim, um ano em 1º de fevereiro. Eu estava falando com meu filho, que está agora em Salvador. Ele gosta muito do Brasil, é a terceira vez que ele vem. Ele veio comigo em 1º de fevereiro de 2023. Eu diria que, para utilizar uma expressão conhecida por vocês, comecei com o pé direito. Em 3 de fevereiro, apresentei minhas credenciais ao presidente Lula. Fomos então para um fim de semana em São Paulo — era um fim de semana chuvoso —, visitamos muitos museus e voltamos para Brasília. Em 8 de fevereiro, voltei para Washington — por sinal, sou de lá, então foi bom voltar para casa e rever minha filha, ela mora na capital. Fui a Washington para preparar o encontro de 10 de fevereiro, na Casa Branca, entre os presidentes Biden e Lula.
E como foi o encontro?
Foi muito bom. Foi bem-sucedido, mas curto. Era o que o presidente Lula havia pedido, porque ele queria voltar ao Brasil por causa da turbulência política. O 8 de janeiro acabara de acontecer. Naturalmente Biden e Lula falaram do 6 de janeiro (de 2021, data da invasão do Capitólio em Washington). Eles conversaram muito sobre isso. Falaram sobre democracia, clima, comércio e investimento.
Havia muito o que conversar, então.
E veja que interessante. A primeira coisa que Lula disse foi: “Presidente Biden, acabei de me encontrar com o chefe da AFL-CIO (a maior federação sindical dos EUA) e ele disse que, de todos os presidentes da história, você é o defensor dos trabalhadores, dos direitos dos trabalhadores”. Lula acrescentou: “Isso significa tudo para mim, porque você conhece o meu background”. E o presidente Biden respondeu: “Claro, você sabe, essa também é minha formação, meu pai era do movimento trabalhista e sempre me preocupei com os trabalhadores”. Então esse foi um momento de grande conexão entre Biden e Lula.
Houve uma afinidade imediata.
Eles já tinham estabelecido uma relação antes, quando se encontraram a sós no Salão Oval, por aproximadamente uma hora. E quando eles entraram para o segundo encontro, na sala do gabinete, estávamos todos lá, Celso Amorim, Mauro Vieira, Jaques Wagner. Foi incrível.
Daquela conversa em fevereiro de 2023, houve progresso?
Eles estabeleceram o primeiro rapport. Compartilharam valores como democracia, Estado de Direito, direitos humanos, atenção ao meio ambiente e direitos dos trabalhadores. Posso dizer que esse encontro, certamente, progrediu para o lançamento, em 20 de setembro de 2023, da parceria entre os EUA e o Brasil para os direitos dos trabalhadores. Naquela ocasião, eles tiveram outro encontro de uma hora (em Nova York) antes desse anúncio — tive o privilégio de estar lá. Então esse é um exemplo muito tangível de onde estamos.
Há outros desdobramentos relevantes?
Tivemos o Fórum de CEOs em dezembro de 2023. Isso também foi interessante. Quando se encontraram em setembro, Lula disse a Biden que gostaria de restabelecer o Fórum de CEOs, iniciado na gestão anterior do presidente brasileiro. E em dezembro, a secretária de Comércio dos Estados Unidos, Gina Raimondo, e seu vice-presidente, Geraldo Alckmin, se reuniram e lançaram Fórum. Muito bem-sucedido. Provavelmente nunca houve um grupo de 12 CEOs norte-americanos e 12 brasileiros. A missão desse fórum é ampliar o comércio e os investimentos em diversos setores.
Sobre o bicentenário das relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos, o governo dos EUA está engajado em celebrar essa importante data.
Sim. Tenho conversado com a embaixadora Maria Luiza Viotti (chefe da embaixada brasileira em Washington). Apresentei-a ao pessoal do Kennedy Center. Eles vão fazer, eu acho, três eventos diferentes. Soube que Caetano Veloso irá a um dos eventos musicais. Estamos fazendo inúmeras coisas e pelo menos duas vezes por mês teremos algo para comemorar o bicentenário das relações entre Brasil e EUA.
É um marco relevante.
Em 26 de maio de 1824, seu encarregado de negócios apresentou as credenciais ao presidente James Monroe. E os Estados Unidos foram os primeiros a reconhecer a independência brasileira de Portugal. Ironicamente — e eu pesquisei, para ter certeza —, fomos de longe os primeiros a reconhecer o Brasil, em mais de um ano. O segundo país a reconhecer — acredito que em julho ou agosto de 1825 — foi Portugal. Eu fui embaixadora em Portugal. Conheço várias coisas de Portugal, mas não sabia disso. É muito interessante.
Essa aproximação com os EUA vem do século 18, ainda da Inconfidência Mineira.
Duzentos anos é muito tempo. Isso mostra a força da nossa amizade e parceria. Sempre dizemos que somos parceiros e somos iguais. Somos as duas maiores economias do Hemisfério Ocidental, temos as maiores Forças Armadas, os dois países mais fortes do Hemisfério Ocidental. Isso é realmente importante para nós.
Qual sua perspectiva sobre a democracia neste momento?
A democracia está frágil em todos os lugares. E para mantermos e fortalecermos a nossa democracia, temos de entregá-la para o nosso povo. E acho que essa é realmente a chave da democracia e da diplomacia. Elas não funcionam a menos que você produza resultados para as pessoas. Então acho que os Estados Unidos têm tido seus desafios, especialmente agora, com a democracia. Isso aconteceu em 6 de janeiro e está acontecendo agora nos tribunais. Mas você também poderia dizer que a democracia foi fortalecida porque mostrou a importância dos tribunais e dos freios e contrapesos entre o Executivo, o Congresso e especialmente as cortes.
Por que a senhora destaca o papel das cortes?
Tivemos muitos desafios no passado e em 2020. Foram mais de 150 prisões, encaminhadas para os tribunais de cada estado. E ganhamos em todos. A democracia prevaleceu, as instituições democráticas prevaleceram. E várias cortes eram lideradas por juízes nomeados por Donald Trump. Então quando você pensa nisso, sobre a liberdade do sistema de Justiça prevalece. E penso que é a mesma coisa no Brasil.
Por quê?
O 8 de janeiro foi horrível, mas também mostrou que a democracia prevaleceu e que as instituições democráticas se mantiveram de pé durante a insurreição nos dois países. O Brasil é um exemplo muito bom; trata-se realmente de uma ilha de estabilidade em uma região tumultuada — e não é só a América Latina, é por todo o mundo. O Brasil é uma democracia estável, com um governo estável, que tem seus desafios. Mas acho que ela ficou mais forte com o que aconteceu.
Talvez a crise tenha sido a oportunidade para fortalecer a democracia.
Com certeza. Foi muito importante o que o presidente Lula fez este ano para lembrar o 8 de janeiro. Eu estava lá quando ele reuniu todo mundo. Foi emocionante. E, depois disso, o presidente Biden escreveu uma linda carta para o presidente Lula, na qual compartilharam seus valores e o compromisso pela democracia.
Houve resposta?
Sim. O presidente Lula enviou outra bela carta. Eles trocaram duas belas cartas no último mês. Eu a entreguei pessoalmente ao presidente Biden porque pela mala diplomática, poderia levar duas semanas. Precisamos mostrar a eles! (risos). As correspondências dizem muito. Falam da amizade deles, da parceria, dos direitos dos trabalhadores e a defesa partilhada da democracia. Ambos os países se fortaleceram por causa dos desafios que enfrentaram e porque as instituições democráticas prevaleceram.
Como a senhora vê o diálogo entre Brasil e EUA em relação às mudanças climáticas?
No encontro de 10 de fevereiro de 2023, esse foi um dos principais focos. O presidente Biden cumprimentou o presidente Lula pelo que ele havia proposto fazer para eliminar o desmatamento até 2030. Falou-se também da COP 30, que o Brasil sediará. Mas, mais do que isso, Lula mostrou do que é capaz de fazer e já reduziu o desmatamento pela metade. Temos trabalhado com o clima há muito tempo, a maior parte na Amazônia.
O presidente Biden pediu US$ 500 milhões para o fundo da Amazônia.
Ele prometeu pedir ao Congresso norte-americano US$ 500 milhões, mas como você pode imaginar, este Congresso é bastante disfuncional neste momento (risos) — ao menos na Câmara (controlada pelos Republicanos). Ainda não temos um orçamento. Esperamos ter um orçamento até 8 de março, quando eles devem discutir novamente sobre esse assunto.
A promessa está de pé, então.
O que estou tentando dizer é que ele disse que iria perguntar ao Congresso, mas seria ao longo dos anos. Pedimos 50 milhões para as duas casas do Congresso e temos que lidar com os republicanos na Câmara e os democratas do Senado. Três milhões foram enviados para o BNDES há alguns meses. E nós temos mais 47 milhões, que estão no que chamam de “funil”. Podemos solicitar mais a cada ano, até os 500 milhões. Mas é o Congresso que tem de fazer isso.
Mas isso mostra o compromisso do governo dos EUA em relação à Amazônia.
Com certeza. Além disso, você sabe, temos a Corporação Financeira para o Desenvolvimento Internacional (DFC, na sigla em inglês), que tem trabalhado com o BTG Pactual, em um investimento de mais de US$ 1 bilhão. Temos uma série de projetos com a Agência para Desenvolvimento Internacional (USAID). Temos incentivado também outros países a se juntarem ao Fundo da Amazônia. Como se diz, ainda tem muita lenha na fogueira.
A senhora já visitou a Amazônia?
Brevemente. Estive em Manaus, com uma delegação do Senado norte-americano no ano passado.
Conseguiram ver algo?
Conseguimos ver o encontro das águas (do Rio Negro com o Rio Solimões). Vimos ainda o Teatro de Manaus. Foi uma visita curta, era feriado de Páscoa. E fui à missa, em uma bela igreja bem ao lado do nosso hotel. Tivemos algumas boas reuniões com ONGs, com o governador e alguns de auxiliares. Definitivamente eu vou voltar para lá. Eu quero que John Kerry (ex-enviado especial do clima na Casa Branca) venha, e ele espera vir antes de se aposentar nos próximos meses. Marina Silva perguntou por ele várias vezes, eles têm um relacionamento muito bom.
O Brasil está na presidência do G20, com algumas bandeiras como aliança global contra a fome e a desigualdade social, um esforço pela sustentabilidade e por uma governança global. Qual é o seu ponto de vista sobre esses assuntos?
Nós apoiamos todas elas. Digamos que certamente estamos alinhados nesses temas.
É possível transformar isso tudo em realidade?
Obviamente, não é da noite para o dia. Mas, quando esteve aqui, nossa secretária (de Comércio) Gina Raimondo disse ao vice-presidente Alckmin que faremos tudo o que pudermos para apoiar a presidência do Brasil. Estamos totalmente alinhados na redução da pobreza, na governança global.
Voltando ao bicentenário, como está a programação?
Sobre os 200 anos de Brasil e Estados, começamos em janeiro com o lançamento dos nossos Jovens Embaixadores. São 46 crianças incríveis, do ensino médio da escola pública. E eles foram escolhidos entre mais de 9.000 candidatos. Eles são os líderes das escolas e das suas comunidades. Eu nunca vi crianças tão incríveis, brilhantes e com tanta energia. Eles viajaram primeiro para Washington e depois passaram mais duas semanas em três partes diferentes dos Estados Unidos. Todos falam inglês, então são capazes de se conectar com crianças. Tenho certeza que eles adoraram. É um programa incrível.
E este mês?
Em fevereiro, o destaque é o G20. Em maio, temos dois grandes eventos. O primeiro, o Itamaraty está patrocinando um simpósio sobre a história dos nossos dois países. Teremos pessoas vindo dos Estados Unidos. Em seguida, a Amcham também promoverá um evento. Em 22 de maio, o nosso porta-aviões USS George Washington virá pela costa e faremos um grande evento no Rio de Janeiro.
Haverá eventos ligados ao esporte?
Sim, a diplomacia esportiva. Temos a NFL (Liga Nacional de Futebol Americano) chegando. Alguns dos atletas estão aqui em São Paulo. No dia 6 de setembro, duas equipes virão a São Paulo para jogar. O Philadelphia Eagles será um dos times. Ainda não sabemos qual será a outra equipe. A diplomacia desportiva será uma grande parte disso.
E sobre intercâmbio cultural?
Estamos organizando a primeira exposição nacional de arte afro-brasileira e afro-americana. Temos algumas pessoas que querem emprestar sua Arte Contemporânea. Estamos trabalhando com a Faap, em São Paulo. Será provavelmente em outubro ou novembro.
Há um evento preparado para homenagear mulheres líderes?
Sim. Será em março, no mês internacional da mulher. Provavelmente na última semana. Esperamos que a agenda de Janja e de Lu Alckmin esteja disponível. Queremos homenageá-las, são mulheres de substância. E também queremos homenagear as mulheres dos Três Poderes: no Supremo Tribunal Federal, no Congresso Nacional, no governo federal. E as embaixadoras estrangeiras. Somos 32 embaixadoras, o que é incrível.
Um dos propósitos deste bicentenário é mostrar que a cooperação entre EUA e Brasil tem resultados práticos para os cidadãos, como a concessão de vistos e geração de empregos.
Sem dúvida. Foram 1,1 milhão de vistos concedidos em 2023. Foi difícil depois da covid. O número de funcionários do consulado diminuiu, então tivemos que reconstruir tudo completamente.
Hoje a demanda acumulada está mais baixa?
Somente os vistos B1 e B2 que têm uma espera de 30, 40 dias, a depender do consulado. São Paulo é o mais procurado. Estamos trazendo mais pessoas para ajudar
O seu segundo ano no Brasil, então, será dedicado ao bicentenário.
Bicentenário e G20. Teremos eleições nos EUA em novembro, mas não estarei envolvida. Não desta vez. Estarei no Brasil.
E sobre Brasília? Gosta da cidade?
Eu gostaria que parasse de chover (risos).
Ah, vai parar. Fique tranquila.
Eu amo Brasília. É fácil de se locomover. Levo de 10 a 15 minutos da minha casa para a embaixada, diferentemente de São Paulo e Rio de Janeiro. E a arquitetura é incrível. Quando levo as pessoas e mostro a elas o que Oscar Niemeyer fez, elas adoram.
É uma ideia fascinante, não?
Sim. Sim, é incrível.
Com informações do Correio Braziliense
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