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“O 8 de janeiro foi orquestrado, premeditado e financiado”, diz Ayres Britto

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Jurista reflete sobre os atos criminosos ocorridos em Brasília há quase um ano e avalia que o ódio ainda está à espreita da democracia

Numa analogia com um rio, o Legislativo seria a nascente; o Executivo, a corrente; o Judiciário, a foz. Assim, o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Ayres Britto vê os Três Poderes constituídos.

O Legislativo é a nascente porque ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa se não for em virtude de lei. O Poder Executivo, nas palavras de Ayres Britto, é a “corrente da vontade decisória do Estado”.

“Mas é preciso um terceiro poder estatal, tão independente quanto os outros dois, tão constitucional quanto os outros dois, porém decisoriamente superior aos outros dois — não hierarquicamente —, para dizer se o Legislativo legislou de acordo com a Constituição e se o Executivo gravitou mesmo na órbita da fiel execução das leis. Esse terceiro Poder é o Judiciário”, explica.

Na opinião do ministro, o STF foi o principal alvo dos atos criminosos do dia da infâmia, como ele se refere ao 8 de janeiro, porque “o Judiciário é proibido de dar o silêncio como resposta”. Ou seja, tem a última palavra.

“Foi uma tentativa de golpe de Estado e, ao mesmo tempo, um atentado ao Estado Democrático de Direito — um democraticídio. Eu entendo que houve uma mentalização, algo concebido, premeditado, financiado, orquestrado e perpetrado, tudo sequenciadamente contra a democracia brasileira”, avalia.

Para ele, a democracia saiu mais forte, mas não está livre de novos ataques. “Há um segmento autoritário que não convive com a democracia como governo do povo, pelo povo, para o povo, politicamente, eleitoralmente.”

Nesta entrevista ao Correio, Ayres Britto também fala sobre os graves “defeitos de fabricação colonial” do Brasil, entre eles, o elitismo, o autoritarismo e o preconceito; e a respeito de questões como o marco temporal das terras indígenas, feminicídios e paridade de gênero no Judiciário.

Aos 81 anos, o ministro recomenda a meditação, algo que pratica há três décadas — como uma defesa nestes tempos sombrios, de tantas guerras e sofrimentos —, e a cada brasileiro um interesse maior pela coletividade para construirmos um país mais justo e civilizado.

Sobre a capital federal, cidade que adotou há 21 anos, diz: “Se o céu de Brasília cobrasse pedágio às nuvens, elas pagariam de bom grado”.

O ano de 2023 foi marcado pelos violentos ataques aos prédios dos Três Poderes da República. Qual é a sua análise deste ano após o 8 de janeiro? Na sua avaliação, as instituições saíram fortalecidas?

Não por acaso, o 8 de janeiro é chamado de dia da infâmia, porque foi uma tentativa de golpe de Estado e, ao mesmo tempo, um atentado ao Estado Democrático de Direito. Numa linguagem mais simplificada: um democraticídio. Entendo que ali houve uma orquestração, uma mentalização, algo concebido, premeditado, financiado, orquestrado e perpetrado, tudo sequenciadamente contra a democracia brasileira em última análise. Porque a democracia é o princípio dos princípios da Constituição de 1988. É o único princípio subjetivamente falando. O único princípio continente. A Constituição é a lei das leis. Formalmente, é o princípio continente, tudo é conteúdo da Constituição no sentido de que as leis, os decretos, os regulamentos, as medidas provisórias, todos os atos normativos se dão à luz da Constituição. Substantivamente, o princípio dos princípios desta Constituição de 1988 é a democracia. Liberdade de imprensa: princípio constitucional, conteúdo da democracia; liberdade de expressão: princípio constitucional, conteúdo do princípio continente da democracia. Diga-se mesmo: separação dos Poderes; inviolabilidade parlamentar por opiniões palavras e votos; a própria República, a própria Federação. Tudo conteúdo do princípio continente, desse invólucro de tudo que se chama democracia. O que aconteceu, portanto, foi um atentado à democracia.

O ódio, então, está à espreita da democracia brasileira?

Está. A democracia brasileira é o alvo a ser alcançado por esse ódio político. Na verdade, o Brasil padece ainda de graves defeitos de fabricação colonial, entre os quais, o elitismo — numa perspectiva socioeconômica — e, numa perspectiva política, o autoritarismo. Politicamente, é o que mais nos interessa, há um segmento autoritário que não convive com a democracia como governo do povo, pelo povo, para o povo, politicamente, eleitoralmente. E democracia como um estado de coisas, em que o preconceito é terminantemente proibido; em que o meio ambiente é protegido, para que seja um meio ambiente sustentado, ecologicamente falando; encurtamento de distâncias sociais e regionais; erradicação da pobreza e da miséria. Tudo isso é conteúdo da democracia. E esses conteúdos, por serem conteúdos humanistas, civilizados, são rechaçados por um segmento até considerável da sociedade brasileira.

Essa democracia se fortaleceu depois disso, ou ela mostrou que estava bem estruturada?

Substantivamente falando, os democraticidas; formalmente falando, os constituicidas não triunfaram. A Constituição está aí, a democracia reagiu, veio para ficar. Entendo que saiu, por incrível que pareça, fortalecida a democracia, porque hoje há uma compreensão de que, sem a democracia, tudo mais é nada. Civilizadamente falando, se se pega de um princípio conteúdo, por exemplo, inviolabilidade parlamentar — por opiniões, palavras e votos do deputado federal, do senador —; para simplificar, se se pega desse princípio conteúdo da democracia para explodir o princípio continente, que é a democracia mesma, os dois vão juntos, o princípio conteúdo e o princípio continente, para os mesmos sete palmos de chão. Porque a razão de ser de todo princípio conteúdo, desse princípio continente da democracia, a razão de ser e a condição de possibilidade de qualquer princípio conteúdo — inclusive liberdade de imprensa, liberdade de expressão — é a democracia. Vou fazer uma comparação para quem acredita em Deus. Deus não pode se varrer do mapa, porque senão leva o mapa junto. O Cosmo que ele instalou desaparece e volta o caos. A mesma coisa é a democracia.

Como assim?

A democracia não pode ser varrida do mapa, porque se ela for, vier a ser varrida do mapa, leva o mapa civilizatório junto. Nada de civilizado subsiste. Se você usa da liberdade de expressão, por exemplo, para cortar os pulsos da democracia, que é o princípio continente, e a liberdade de expressão é o principal conteúdo, a democracia vai morrer por assassinato, e a liberdade de expressão vai morrer por suicídio. Assim como Deus não pode ser varrido do mapa, não tem lógica. Como diria Vinicius de Moraes: ‘Se foi para desfazer, por que é que fez?’. Também a democracia não pode trabalhar com a ideia dos seus próprios funerais. Não pode dispor, admitir que está comprometida com sete palmos de chão. A democracia veio para ficar. É ela que nos torna substantivamente um país primeiro-mundista; juridicamente primeiro-mundista; politicamente primeiro-mundista.

Os ataques foram direcionados aos Três Poderes, mas o senhor acha que o Supremo era o alvo?

Aparentemente, o principal alvo. As três sedes do poder político foram atacadas. Uma ousadia, uma barbárie. Algo absolutamente impensável, inadmissível. Agora, o alvo principal foi o Supremo, por uma razão: é que a vontade decisória do Estado é concebida e realizada imitando a configuração física de um rio. Qual é o rio que não tem nascente, corrente e foz ou embocadura? O Estado decisoriamente considerado quanto à sua vontade decisória é assim também. Primeiro, é o Legislativo: a nascente, a fonte desse rio. Porque ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa se não em virtude de lei, e o Legislativo elabora as leis logo abaixo da Constituição. Diz a Constituição no artigo 5º, inciso segundo: ‘Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa se não em virtude de lei. A nascente do rio decisório do Estado, da vontade decisória do Estado, é o Legislativo. A corrente desse rio decisório, desse rio estatal decisório, é o Executivo, que é chamado de Poder Executivo exatamente por dar imediata execução às leis. Ele gravita na órbita da fiel execução das leis, para isso, sobretudo, baixando decretos e regulamentos, sem precisar de provocação de quem quer que seja, agindo de ofício, por impulso próprio. O Poder Executivo é a corrente da vontade decisória do Estado. O Legislativo é a nascente. Mas é preciso um terceiro poder estatal, tão independente quanto os outros dois; tão constitucional quanto os outros dois; porém decisoriamente superior aos outros dois — não hierarquicamente, não se trata de hierarquia — e funcionalmente posterior aos outros dois, para dizer se o Legislativo legislou mesmo de acordo com a Constituição e se o Executivo gravitou mesmo na órbita da fiel execução das leis. Esse terceiro Poder, exterior aos outros dois, posterior aos outros dois funcionalmente e decisoriamente superior aos outros dois é o Judiciário. Por isso que a Constituição diz: ‘A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’. A Constituição não diz assim: ‘A lei não excluirá da apreciação do Poder Legislativo’. Não diz porque o Legislativo não fala por último. Não diz que a lei não excluirá da apreciação do Poder Executivo lesão ou ameaça a direito. Não diz. Porque Executivo é corrente, mas não é embocadura. A embocadura, a foz é o Judiciário. E como o órgão de cúpula, na fronde, no ápice do Poder Judiciário, poder que fala por último, está o Supremo Tribunal Federal.

É o único tribunal supremo…

É por isso que é chamado de Supremo. É o único tribunal supremo. Temos quatro tribunais superiores, a partir do STJ; 27 tribunais de Justiça; 27 tribunais regionais eleitorais; seis tribunais judiciários regionais federais. Mas só temos um Supremo Tribunal Federal; uma única lei suprema: a Constituição; um único princípio substantivamente supremo, que é a democracia. Quem guarda a Constituição por último, como lei suprema? Um tribunal supremo. Quem guarda a democracia como princípio supremo? Um tribunal supremo, é o STF. Então, por isso é que foi atacado, porque guarda por último a Constituição formalmente — e há um segmento social que é constituicida.

Os Poderes estão organizando um ato para não se esquecer o 8 de janeiro. É para que a gente entenda a gravidade daquilo ou porque assim deve ser?

As duas coisas, a gravidade e porque a democracia é mesmo o princípio que veio para ficar, o princípio continente: razão de ser e condição de possibilidade dos outros princípios constitucionais, inclusive República, Federação, separação dos Poderes, presidencialismo. Tudo é instrumento da democracia. Democracia é o bem geral do povo brasileiro em última análise. É um governo do povo, ou seja, constituído pelo povo; exercido pelo povo, seja diretamente por plebiscito, referendo, iniciativa popular, seja indiretamente, ou seja, por seus representantes eleitos. Por isso que a Constituição diz, em seu artigo 78, que seja quem for o presidente da República ele tomará posse perante o Congresso Nacional prometendo, antes de tudo, guardar a Constituição e, entre outras coisas, promover o bem geral do povo brasileiro. Isso é democracia. E os elitistas socioeconomicamente e os autoritários politicamente não aceitam que o governo do Estado seja estruturado e funcionalizado para o bem geral do povo, e, sim, das elites, etc.

O senhor diz que “somente se passa o Brasil, judicialmente, a limpo com a irrestrita observância da Constituição”. Por quê?

O Brasil só pode ser passado a limpo se batermos todos continência para a Constituição. Inclusive os órgãos de Segurança Pública, a partir da Polícia Federal; inclusive as Forças Armadas. E, claro, começando pelo presidente da República. Para passar o Brasil a limpo, é preciso bater continência para a Constituição, que é uma Constituição principiologicamente como uma linguagem de norma principial ou principiológica, normas jurídicas, principais ou principiológicas, é um modelo de Constituição, porque fala da soberania popular, da cidadania, da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, do pluralismo político, do desenvolvimento nacional, da erradicação da pobreza e da marginalização, da proibição de preconceitos, da proteção do meio ambiente. É uma Constituição de primeira qualidade, primeiro-mundista. Então, bater continência para a Constituição é passar o Brasil a limpo.

Outra frase muito forte: “Constituição governa permanentemente quem governa transitoriamente”. Ao longo desses 35 anos, isso tem sido seguido?

Em linhas gerais, sim, porque ela tem sido muito mais efetivada do que descumprida. A Constituição governa permanentemente quem governa transitoriamente, e um dos modos de governar permanentemente quem governa transitoriamente é fazer do Supremo Tribunal Federal, como órgão de cúpula do Judiciário, aquela instância decisória que não governa, mas impede o desgoverno. Não que ele não seja infalível, não se trata de infalibilidade. Trata-se de fazer do direito uma casa arrumada, civilizada, não uma barafunda. Isso é uma ordem lógica e cronológica: Legislativo, Executivo, Judiciário. Isso é uma cláusula pétrea. Primeiro Legislativo, em imediata sequência o Executivo e, por último, quem fala em nome do Estado é o Judiciário. E no âmbito do Judiciário esse órgão de cúpula solitariamente posto na fronde de todo o Poder Judiciário que é o Supremo Tribunal Federal. O Judiciário fala por último também porque ele não pode dar o silêncio como resposta às demandas, aos pedidos, às reclamações que lhe são encaminhadas. O Legislativo pode dar o silêncio como resposta quando sente que se decidir sobre aquela matéria vai experimentar um desgaste popular. O Executivo pode dar o silêncio como resposta, debaixo desse mesmo pretexto ou igual motivação. O Judiciário é proibido de dar o silêncio como resposta. Quando se bate às portas do Judiciário já se tem antecipada certeza de que haverá uma resposta, debaixo da razoável duração do processo, de um tempo razoável.

Colóquio Internacional sobre Justiça Climática e Democracia. 12/09/2023 Ministro Ayres Britto, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, STF, (palestrante).
Ayres Britto: “Bater continência para a Constituição é passar o Brasil a limpo”(foto: Carlos Moura/SCO/STF)

Como avalia a PEC do STF, que foi aprovada no Senado e prevê a redução dos poderes da Corte?

Temos que ver se houve ofensa de cláusula pétrea. Estamos todos estudando o conteúdo da PEC, porque cláusula pétrea é uma espécie de espelho em que o Estado se reconhece como poder constitucional, formalmente, e eminentemente democrático. As cláusulas pétreas são irreformáveis e imodificáveis. Elas não podem ser alteradas substantivamente de modo a reduzir o conteúdo de cada uma delas. Por exemplo: a Constituição fala, no artigo 60, parágrafo 4, não será objeto de deliberação, pois sequer será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir cláusula pétrea. Tendente é que tem a propensão, a inclinação, que implique o risco de abolir cláusula pétrea, mas abolir não é só varrer do mapa, é desossar uma cláusula pétrea, porque senão há golpes de emendas, uma emenda atrás da outra, vai se comendo a cláusula pétrea pelas beiradas até completamente.

Essas ofensivas do Parlamento surpreenderam? São justificáveis?

Há um clima, que vem dos últimos quatro anos, de tensionamento, fricção, estresse coletivo. Até aí, tudo bem, porque é próprio da vida política esse confronto de ideias. A democracia, que é o nosso caso, é o regime que mais estimula, incentiva, propicia a formação de consensos, e que mais civiliza os dissensos, as controvérsias. O problema é quando os dissensos, as controvérsias, os litígios são concebidos, financiados orquestrados numa perspectiva democraticida. Esse estresse coletivo, quando é industriado, planejado, financiado para colocar em risco a democracia é que é da maior das gravidades. Por isso que, certa feita, um pensador alemão, Bertolt Brecht, por volta de 1950, disse assim: “Há quem prepare cuidadosamente o seu próximo erro”. No nosso caso, o seu próximo ataque à Constituição; o seu próximo ataque à democracia.

A justificativa dada por esses críticos ferozes é que o Supremo passa dos limites. Qual a explicação?

Aí é preciso fazer uma distinção entre ativismo judicial e proatividade interpretativa. O ativismo é proibido pela Constituição. É quando o Poder Judiciário se coloca no lugar do Legislativo ou do próprio Executivo. O Poder Judiciário não pode usurpar funções dos outros dois Poderes. O Judiciário encimado pelo Supremo, ele é foz ou embocadura. Ele não é nascente; ele não é corrente. Ele deve atuar nos marcos da embocadura, da foz. Usurpar função é ativismo, é ir além das competências do Supremo. Quando se vai além das competências, se perpetra ativismo, porque usurpa a função dos outros dois Poderes. Mas é preciso não confundir ativismo com proatividade interpretativa, acuidade interpretativa, para não ficar aquém. Quando o Judiciário desentranha, desata de um texto normativo todos os seus conteúdos, está sendo proativo interpretativamente, para não ficar aquém das angulações normativas do texto interpretado. E isso é um dever. Há uma proibição de ir além do texto normativo, mas há um dever de não ficar aquém. E quando, às vezes, o Judiciário enxerga angulações normativas, conteúdos que já estavam lá no texto interpretado, porém com o tempo é que houve uma espécie de tirada da trave, da pressa, da nuvem, do olhar interpretativo do jogador, aí a gente pensa que houve inovação, ativismo. Não houve. Não devemos ter duas caras jamais, porém um novo par de olhos sempre. E o par de olhos do intérprete se aclara com o tempo, e ele passa a enxergar coisas que não enxergava antes.

Ou seja, evoluir, amadurecer?

Com o passar do tempo, você amadurece, eu amadureço, e as instituições amadurecem, organicamente, funcionalmente, e as coletividades amadurecem também com o passar do tempo. Uma Constituição principiológica igual à nossa, em que cada princípio é uma janela aberta para o futuro, é demandante de uma interpretação futurista, de uma interpretação que corresponda a esse porvir. Com o passar do tempo, vamos enxergando na Constituição novos conteúdos, isso não é invencionice. A norma já estava lá, apenas o nosso olhar interpretativo estava anuviado, prejudicado pela pressa, pelo medo, pela superficialidade. Então, o que o Supremo tem feito, a meu juízo, é preponderantemente agir com proatividade interpretativa, e não com ativismo.

O senhor participou do julgamento do caso Raposa Serra do Sol, peça-chave da discussão sobre o marco temporal. Há solução com o posicionamento do Congresso, ou o STF precisará se impor?

É preciso fugir da subinterpretação da Constituição. A Constituição, às vezes, é vítima de subinterpretações, interpretações apressadas, atécnicas. O Supremo tem que aclarar a sua própria decisão, tomada em Raposa Serra do Sol. Aquele marco temporal foi tópico, pontual, para um caso concreto. Não foi para generalizar. O STF terá que dizer como entendeu a sua decisão, se a decisão já tomada em Raposa Serra do Sol e se a nova decisão do Supremo, ou do Congresso, estabelecem mesmo um marco temporal, e se esse marco temporal está na Constituição ou não. Entendo que, em rigor, não está. O marco temporal não constou do meu voto como relator. Fui voto vencido no particular. O marco temporal surgiu na discussão do tema por efeito de uma proposta do então ministro Carlos Alberto Menezes Direito. Terminamos todos admitindo para aquele caso o marco temporal. Mas eu entendo, como o Supremo parece que está entendendo, que a melhor interpretação do artigo 231 e seus parágrafos não tem nada a ver com marco temporal. O que interessa é obedecer a Constituição, que faz da demarcação um dever do Estado e um direito das comunidades indígenas. É bom lembrar que as terras indígenas são de propriedade da União. Isso está no artigo 20, dela mesma, Constituição. As terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas são de propriedade da União. Eles têm usufruto exclusivo e perpétuo. Então, o Supremo vai dar a palavra final sobre como interpretar corretamente os dispositivos da Constituição.

Por que é tão difícil uma mulher chegar à cúpula do Judiciário?

Entendo que padecemos desses gravíssimos defeitos de fabricação colonial de que falei há pouco, entre eles o preconceito. Veja que na Constituição, entre os direitos e as garantias fundamentais, o primeiro deles é: ‘Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações’. E a igualdade na Constituição só pode ser interpretada não literalmente, ali na cabeça do artigo quinto, direito à igualdade. É direito à igualdade numa perspectiva de oportunidades. Onde se lê direito à igualdade, é de se ler direito: ‘Direito à igualdade em oportunidades’. E as mulheres não têm tido as mesmas oportunidades para ascender à Corte Suprema do país. Não faz o menor sentido contarmos com apenas uma mulher, Cármen Lúcia, muito boa constitucionalista, muito boa ministra por sinal, na Corte constitucional suprema do país. É preciso quebrar com esse preconceito.

Avalia que o Brasil regrediu? Porque tínhamos duas ministras…

Claro que não tem nada a ver com a nomeação do ministro Flávio Dino. A meu juízo, está à altura do cargo, ele vai qualificar a instituição, é dotado da notabilidade do saber jurídico, da reputação ilibada, é um democrata convicto e deverá ser um grande ministro. E saberá cortar, rente, cerce, o cordão umbilical com as instâncias políticas anteriores, que são o presidente da República e o Senado Federal. Ele baterá continência para a Constituição e as leis do país exclusivamente. Porém é evidente que o comando constitucional de igualdade de oportunidades é também no plano do gênero, homem e mulher, e não está havendo. É de se atentar para esse erro, esse equívoco, essa distorção, essa disfunção, de não tentar equilibrar quantitativamente o número de homens e mulheres na Corte suprema do país.

Os tribunais começam a ser cobrados para atender à nova regra do CNJ sobre a paridade de gênero. Isso vai ajudar a mudar essa realidade?

Vai, porque é uma questão de mentalidade. Como é difícil a gente internalizar certas ideias. As ideias mortas persistem. Como é difícil enterrar ideias mortas! Mas é o nosso desafio. Mais do que um problema, é um desafio. Porque problema nos remete para dificuldades, e desafios nos remete para possibilidades de superação. Prefiro a palavra desafio. Temos que bater continência para Constituição, e a Constituição faz da igualdade de gênero um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, no plano dos direitos e as garantias individuais; e no plano dos objetivos de proibição de preconceito.

O poeta Ayres Britto tem tido mais tempo agora para a produção literária?

Antigamente se dizia, em latim, nascuntur poetae, o poeta nasce feito. Ou seja, ele já nasceu assim. O que lhe cabe é turbinar mesmo, dinamizar, tonificar, ativar a sua vocação. No meu caso, sou poeta desde os 12, 13, 14 anos. Nunca parei, e sempre tenho uma maneira um pouquinho mais poetizada, um pouco mais literária de falar, inclusive sobre tema jurídicos, porque é da minha natureza, da minha índole, da minha compostura anátomo-fisiológica, psicofísica biopsíquica. Nunca deixarei de ser poeta.

São tempos tão duros, ministro, ainda se vive, talvez, um pós-guerra da pandemia, e as pessoas estão muito sensíveis, depressivas. O que recomenda?

Faço meditação oriental há mais ou menos 30 anos, todos os dias. É um ensinamento, uma lição permanente, de observação atenta das coisas, assumir a postura da testemunha, do observador. Tanto do que se passa dentro de você quanto fora de você, e quando a gente faz isso, põe foco no que vê, seja interiormente, seja exteriormente a gente mesmo, a gente esvazia a mente de qualquer memória e de qualquer plano — memória do passado, plano para o futuro —, a gente aprende a viver presentificadamente. E quando a gente esvazia a mente de memórias e de planos, parece que o universo vem e preenche com recado estalando de novo, novinho em folha: mente vazia, de passado e de futuro, fincada no presente, não é oficina do diabo, parece que é atelier de Deus. A meditação é um exercício de serenização, nos leva a ver as coisas com mais calma, com mais foco, mais serenidade, um pouco mais de calma, um pouco mais de equilíbrio. E isso me parece fundamental nos dias atuais, tão agitados. É muito maior do que a nossa capacidade de processá-las, seja emocionalmente, seja intelectualmente. Parece que nossas agendas são invencíveis. A gente não dá conta de tanta agenda, e isso nos agita, nos desestabiliza emocionalmente, nos estressa. É preciso se defender da própria vida.

O que se enxerga hoje são as pessoas muito ligadas nas redes sociais. Isso cansa?

Cansa muito, estressa muito. É preciso sair também das redes e se balançar em outras redes, as nordestinas talvez.

O senhor usa o Twitter para extravasar?

Eu mando quase diariamente, ou de dois em dois dias, três em três dias. É uma espécie de semeadura, uma tentativa de dar uma clareada nas ideias, de transmitir uma experiência de vida de uma pessoa que já tem 81 anos. O objetivo é servir à coletividade. É aquela velha história, o ditado é antigo, mas o conteúdo é sempre novo: ‘Quem não vive para servir não serve para viver não’. O cidadão é a pessoa que tem abertura para o coletivo. Péricles dizia: ‘Eu espero ver cada ateniense dizer de si para si, eu não participo da vida coletiva porque sou livre; eu sou livre porque participo da vida coletiva’. Ou seja, a verdade tem um compromisso com a coletividade. Não é bonito isso?

A gente tem feito isso como um país?

Não na devida conta. O país precisa desenvolver mais o seu lado de compromisso com a coletividade. Cada um devia desenvolver um pouco, para não dizer muito mais, o espírito de identidade com o todo. Nós somos parte de um todo — somos um todo à parte, é verdade, mas somos também parte de um todo. Se a gente cuida desse ‘toda parte’, que é cada um de nós, também deve cuidar da nossa dimensão de parte de um todo que nos envolve, que nos precede, que nos antecede e vai nos suceder. Espírito público é isso, é compromisso com a coletividade. Civismo é exatamente isso: compromisso com a coletividade e espírito público. E no Brasil estamos muito aquém do ideal.

O senhor já citou Jesus Cristo como “o cara”. O que quis dizer?

Esse tal de Jesus Cristo foi o cara — sem querer ser desrespeitoso nessa linguagem mais coloquial —, ou seja, foi a pessoa mais importante da humanidade, na medida em que dividiu a própria história da humanidade em dois períodos, e só ele fez, pelo menos na parte ocidental: antes e depois dele. O nome dele era Jesus Nazareno, Jesus de Nazaré, filho de um carpinteiro. Era um iluminado, porque via coisas que ninguém via, monumentalizou o amor, fez do amor o princípio espiritual dos princípios espirituais. Mas o amor não teórico, evanescente, romântico: o amor ao próximo, carne e osso, olho e pálpebra, sangue e veias. Aquela pessoa ao alcance da nossa mão estendida. Ele se preocupou com o ser humano necessitado de compreensão, de atendimento, de apoio, de estímulo, no cotidiano, no dia a dia. E, mais do que isso, ele foi autêntico, ele não foi um farsante, embusteiro, patife, mentiroso, hipócrita. Ele fazia da sua prática a encarnação do seu discurso.

A sua Brasília, a terra que o senhor aprendeu a amar, como está?

Sou sergipano, amo o Sergipe. Morei também em São Paulo, por mais ou menos dois anos, e estou aqui há quase 21 anos. Amo Brasília de paixão. Claro que ela é tensionada politicamente, é friccionada politicamente, é estressada politicamente, como toda sede do poder político, em qualquer lugar do mundo, capital de um país soberano, porém de fora parte do tensionamento político, Brasília é uma cidade arborizada, florida, passarinhada, dona de um céu azul belíssimo. Se o céu de Brasília cobrasse pedágio às nuvens, elas pagariam de bom grado. Esse Planalto Central é de um bioma riquíssimo. Eu amo essa cidade de nome Brasília. É a única cidade que é ao mesmo tempo capital do país, capital da União, e capital do Distrito Federal. Olha que trifuncionalidade política extraordinária.

O Brasil está no caminho certo?

Está no sentido de que tem uma Constituição civilizada. É a única lei que não tem número, porque não foi elaborada pelo Estado, foi elaborada pela nação. A nação só faz uma lei: a Constituição originária. É por isso que ela não tem número, e a nação é esse elo, esse link, esse vínculo espiritual, afetivo, político, humano, entre a ancestralidade, a coetaneidade e a posteridade de um mesmo povo, soberano. Estou falando da nação — da nação é um cacófato, um desconforto eufônico, mas é uma armadilha eufônica inevitável —, mas somente a nação é que elabora a Constituição de um povo soberano. Ela não é criatura do Estado, o Estado é criatura da Constituição, e a Constituição é criatura de quem? Dela, nação. A nação legisla sem ser legislada. Este país chamado Brasil é dotado de uma Constituição primeiro-mundista, pelo humanismo, pela civilidade, pela civilização, pelo caráter civilizatório dos seus princípios, a partir da democracia. Se observar formalmente a Constituição e factualmente a democracia, teremos um povo desenvolvido espiritualmente, economicamente, politicamente, ecologicamente.

E sem democracia…

A democracia não vence por nocaute. Vence por acúmulo de pontos ao longo de um processo que é espacial e temporal. Quem vence por nocaute é ditadura. Democracia, volto a dizer, é o regime que insuperavelmente estrutura, organiza, o consenso da população e civiliza o dissenso. Fora da democracia só existe uma coisa: barbárie.

O senhor tem acompanhado esse número absurdo de feminicídios no DF?

Estarrecidamente. Que violência, que brutalidade, que primitivismo, que falta de humanismo, de coração, de sentimento. Coração não é só músculo cardíaco, é também estrutura neural, é quociente emocional e, portanto, sinônimo de sentimento. Como QI, o quociente intelectual, é sinônimo de pensamento. Fico estarrecido como é que pode ainda subsistir esse tipo de barbárie e de primitivismo.

O que se pode fazer?

Educar é ensinar a ver. Ver pelo prisma do humanismo. O ser humano é sagrado, não é só algo profano. Tirar a vida de alguém por assassinato, violentamente, isso é uma aberração. Isso é uma negação da humanidade que reside em cada um de nós. É preciso ensinar a ver desde cedo, mostrar que todo e qualquer preconceito é aberrante. A gente tem, com todo o empenho, de mostrar como os preconceitos nos brutalizam, nos desumanizam. Quando Nietzsche disse que educar é ensinar a ver, é ensinar a ver, por exemplo, que a emoção da gente antecede o quociente intelectual, que é o que temos de mais importante. Até porque, no ventre materno já tínhamos emoção, identidade com a nossa mãe, alguns insights, instinto de conservação. O pensamento é um fenômeno pós-parto. Quem veio primeiro foi o sentimento, tem mais histórias para contar.

Respeitar o sentimento?

É preciso prestigiar as pessoas sentimentais, emotivas,. A emoção é que abre os poros da razão, não é a razão que abre os poros da emoção. O sentimento é mais importante até do que o pensamento. Antes de a gente pensar que pensar é preciso, é preciso sentir que sentir é preciso. Toda pessoa de sentimento zero é uma pessoa de pensamento raso. Então, ensinar as nossas crianças arte, por exemplo, conviver com arte. É fundamental frequentar museus, galerias, para conhecer obras de escultura, de pintura, gostar de música, de ler, de poesia. Até fiz um trocadilho uma vez dizendo assim: ‘Música é a fala mais bonita do som. Poesia, o som mais bonito da fala’. Os governantes de sentimentos são muito melhores, mais confiáveis, mais humanos do que os governantes que estão se lixando para a sentimentalidade, são uma pedra de gelo, capazes de tudo de mau, de ruim, que não têm freios inibitórios, freios éticos. Ensinar a ver a vida por outro prisma, o prisma da identidade entre homens e mulheres, da igualdade, desde cedinho, ensinar a criança a gostar do meio ambiente. E por aí vai. Mostrar que a desonestidade, por exemplo, é aberrante. Uma pessoa desonesta é capaz de tudo no sentido de realizar os seus interesses, passando tudo e todos para trás.

Com informações do Correio Braziliense

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