Generais não foram punidos em 1964, mas prisão os espera por golpe de 2023. Por Leonardo Sakamoto
Leonardo Sakamoto
O Brasil deve conseguir mandar para o xilindró alguns generais por conspirarem para manter Jair Bolsonaro no poder mesmo após ele perder a eleição de 2022. Dada a quantidade de material reunido pela Polícia Federal, os candidatos mais bem cotados nas casas de apostas, até o momento, são Braga Netto e Augusto Heleno. Poderia ser mais. Mas, no final, os dois devem ser os anéis a serem sacrificados por uma instituição que não aceita perder os dedos.
É um começo, apesar de não bastar. Principalmente para um país que passou por 21 anos de ditadura civil-militar e não viu membros da cúpula de suas Forças Armadas amargando uma cana pela morte e tortura de críticos ao regime. Ou por causa da corrupção que grassava bandida em negociatas verde-oliva. Ou ainda pela pilhagem do meio ambiente, a escravização na Amazônia e a porrada sobre sindicatos, políticas úteis aos sócios empresariais dos militares.
Pelo contrário: a Lei da Anistia, de 1979, passou uma borracha nos crimes cometidos por agentes do Estado em nome de uma pretensa pacificação – a mesma pacificação e a mesma anistia agora solicitadas por Bolsonaro para quem participou do golpismo do 8 de janeiro de 2023. O que, claro, abre a porta para ele próprio ser perdoado.
A falta de punição de militares de alta patente por causa do golpe de 1964 e devido a todas as sacanagens cometidas durante a ditadura ajudou a semear a tentativa de golpe ao final do mandato de Bolsonaro. O passado não resolvido sempre volta. Camuflado de pão com leite condensado, mas volta.
O golpe de 31 de março de 1964 que completa 60 anos neste domingo de Páscoa continua vivo nos militares que insistem em melar eleições, no discurso cínico de que as Forças Armadas são o poder moderador e na corrupção de fardas limpas com braço forte e mão leve. Mas também segue vivo na tortura de negros e pobres pelas mãos de policiais, herdeiros dos métodos e técnicas desenvolvidos na repressão.
O golpe de 1964 ainda é purulenta ferida exposta. Nunca curamos o que foi deixado por 21 anos de ditadura. Tapamos com um curativo mal feito, ao qual chamamos de transição lenta, gradual e segura. Cobrimos com anistia. Com Deixa Prá Lá. Com governabilidade. Mas essas feridas continuam fedendo, apesar dos esforços estéticos.
Durante as sessões de tortura realizadas no 36º Distrito Policial, local que abrigou a Oban (Operação Bandeirante) e, posteriormente, o DOI-Codi, na capital paulista, durante a ditadura, os vizinhos no bairro do Paraíso reclamavam dos gritos de dor e desespero que brotavam de lá. As reclamações cessavam com rajadas de metralhadora disparadas para o alto, no pátio, deixando claro que aquilo continuaria até que o sistema decidisse parar.
Mas o sistema não parava. O sistema nunca para por conta própria. Ele precisa ser freado pelo resto da sociedade.
Uma das formas de frear é proteger o ensino de História nas escolas contra a sanha estúpida de pessoas e movimentos que desejam que você aprenda a data em que João Goulart foi deposto em 1964, mas que isso não representou um golpe de Estado e foi feito dentro da lei. Ou que os estudantes decorem o texto da Lei Áurea, mas não debatam por que o 13 de maio de 1888 não significou autonomia aos negros e negras deste país.
No dia 10 de maio de 1933, montanhas de livros foram criadas nas praças de diversas cidades da Alemanha. O regime nazista queria fazer uma limpeza da literatura e de todos os escritos que desviassem dos padrões impostos. Centenas de milhares queimaram até as cinzas. Einstein, Mann, Freud, entre outros, foram perseguidos por pensarem diferente da maioria. A opinião pública e parte dos intelectuais alemães se acovardaram ou acharam pertinente o fogaréu nazista descrito acima, levado a cabo por estudantes que apoiavam o regime. Deu no que deu. Hoje, vemos muitos se acovardarem diante de ondas burras, intolerantes e violentas frente à necessidade de defender a História.
Não, não estou comparando nossa sociedade com a nazista. Apenas dizendo que a burrice é atemporal. E universal. E gruda, permanecendo viva quando já se julgava ela morta e enterrada.
Deveríamos transformar o 31 de Março em feriado nacional. Talvez assim possamos garantir que esse dia nunca seja encarado por nós e, principalmente, pelas gerações que virão como um grande Primeiro de Abril, como se o golpe de 1964 nunca tivesse existido. Essa cicatriz que não deveria ser escondida, mas permanecer como algo incômodo, à vista de todos, funcionando como um lembrete da nossa incompetência em por fim às heranças daquele tempo.
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