Por meio de diversos documentos e discursos, o papa defendeu mudanças na economia de mercado, propondo uma “nova economia”. Nem o banco do Vaticano foi poupado nas suas críticas à idolatria do dinheiro, a que chamou de “esterco do diabo”
Por palavras e ações, com o próprio testemunho, o papa Francisco difundiu, de forma contundente, o seu incômodo com o modo como funciona a economia e denunciou o esgotamento do sistema capitalista. Não por questões ideológicas nem mesmo com pretensões acadêmicas, mas pela firme convicção de que o mundo, como está, contraria em tudo o que pregou Jesus Cristo.
“Não é comunismo. É Mateus, capítulo 25, versículo 35”, costumava dizer, quando confrontado. Francisco se referia à passagem em que Jesus disse: “Tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me,”. Para além das obras de caridade e ações meramente assistencialistas, o papa trabalhou para introduzir uma nova lógica ao pensamento econômico ou resgatar a razão de ser da ciência que, em sua origem — oikonomia — significa cuidar da casa. Para ele, cuidar da casa é cuidar de tudo e de todos, na casa.
Fundamentos
O economista Guilherme Costa Delgado, autor do livro Rumo ao mundo de Francisco: economia, humanismo e ecologia em tempos de crise diz que o pensamento econômico de Francisco pode ser sintetizado na carta convocatória publicada em maio de 2019, intitulada Economia de Francisco, na qual ele convida economistas e empresários do mundo inteiro a estabelecer um pacto para “mudar a economia atual e atribuir uma alma à economia de amanhã”.
“Sim. É preciso realmar a economia”, diz o papa, indicando que o que se tem atualmente é um sistema sem alma, portanto, sem vida, que precisa ser reanimado. No convite, ele propõe “uma economia que faz viver e não mata, que inclui e não exclui, que cuida da criação e não depreda”. Para Delgado, essa expressão simboliza uma proposta disruptiva e um contraponto à economia convencional, que vem ampliando as desigualdades sociais, provocando desemprego, pobreza, exclusão e, cada vez mais, destruindo o próprio planeta, como o mesmo Francisco citou em documentos anteriores. “Quando o papa propõe uma economia que faz viver e não mata, inclui e não exclui, cuida da criação e não depreda, é preciso notar que não se trata apenas de uma fala de um líder religioso, mas que essa é, de fato, uma questão mundial, que retrata uma crise no sistema atual, e que afeta a todas as pessoas, sociedades e governos”, aponta.
A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, ou A Alegria do Evangelho, publicada logo no início do pontificado e considerada o seu “programa de governo”, Francisco apela para a urgência de se combater as causas estruturais da pobreza com uma nova economia. O tema é aprofundado na carta encíclica Laudato Si — o cuidado com a casa comum, na qual ele fala em uma economia humana e ecológica e de uma ecologia integral.
Longe de ser uma abstração ou utopia, Delgado observa que a ideia do papa encontra respaldo nas escolas da economia humana —que nasce da economia social e tem, hoje, como principal referência o teórico Amartya Sen —, e da economia ecológica, a partir dos meados dos anos 1970, com Nicholas Georgescu-Roegen.
“Ao criar o conceito de ecologia integral, o papa reúne essas duas escolas e propõe mudanças na sociedade de consumo e no modo de produção depredador”, observa.
Luiz Gonzaga Belluzzo, professor de economia na Unicamp, também um profundo conhecedor da Economia de Francisco, aponta que o papa resgata o posicionamento de João XXIII, mentor do Concílio Vaticano II, especialmente no documento Mater et Magistra, no qual se lê que “a Igreja, apesar de ter como principal missão a de santificar as almas e de fazê-las participar dos bens da ordem sobrenatural, não deixa de preocupar-se ao mesmo tempo com as exigências da vida cotidiana dos homens, não só no que diz respeito ao sustento e às condições de vida, mas também no que se refere à prosperidade e à civilização em seus múltiplos aspectos, dentro do condicionalismo das várias épocas.”
Como Delgado, Belluzzo diz que a proposta de Francisco é factível e foi testada em outros momentos, como no período pós-guerra, quando a Economia do Bem-Estar Social trouxe uma série de princípios para garantir aos cidadãos alguns direitos econômicos, como saúde, educação, previdência e regras trabalhistas. “Ao longo da história, temos visto uma busca permanente por uma economia mais inclusiva, expressa em vários pensadores. Não vou falar do Karl Marx, para não causar pânico. Mas posso dar o exemplo de Keynes. Ele era um filósofo moral. Alguns dizem que Keynes era o teórico do deficit. Isso é reducionismo. Ele estava interessado mesmo era no bem-estar das pessoas”.
Belluzzo observa que o Bem-Estar a Economia funcionou bem e viveu uma era de ouro até o final dos anos 1970 e início dos anos de 1980, quando líderes como Margareth Thatcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (EUA) aderiram ao chamado neoliberalismo. “Naquela época, houve o choque do petróleo e esses países resolveram promover a abertura financeira”, recorda Belluzzo.
Esterco do diabo
Com seu jeito pacífico e conciliador, Francisco não deixava de ser contundente quando o assunto era a priorização do capital em detrimento das pessoas. Costumava usar a expressão “esterco do diabo” para se referir ao dinheiro. Em novembro de 2016, falando a cerca de 500 integrantes da Conferência Internacional das Associações de Empresários Católicos (Uniapac), ele voltou a usar a expressão, alertando que o dinheiro “existe para servir e não para governar”. Em setembro de 2019, durante o comentário ao Evangelho, na oração do Angelus, o papa disse que “a riqueza desonesta é o dinheiro, também chamado ‘esterco do diabo’, e em geral os bens materiais. A riqueza pode levá-lo a erguer muros, criar divisões e discriminação”. Ele se referia à parábola do mau administrador que esbanjou todos os bens do patrão.
Financeirização
Em 2019, o documento Oeconomicae et pecuniariae quaestiones — Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro amplifica o pensamento do papa para a estrutura do Vaticano, uma vez que é assinado, não pelo papa, mas por dois organismos da Igreja: a Sagrada Congregação para doutrina da fé e o Dicastério para os Direitos Humanos.
Entre outras coisas, o documento critica a financeirização da economia e alerta para temas. “A criação de títulos de crédito de alto risco — que operam uma espécie de criação fictícia de valor, sem um adequado controle de qualidade e uma correta avaliação do crédito – pode enriquecer aqueles que os intermedeiam, mas cria facilmente insolvência em prejuízo de quem deve recebê-los. Isso vale ainda mais se o peso da criticidade desses títulos é transferido ao mercado, no qual são espalhados e difundidos, em vez de ser colocado sobre o instituto que os emite”, diz um trecho do documento, que também condena práticas como as aplicações em paraíso fiscal e as empresas que operam em sistemas offshore.
O jornalista Luiz Nassif, que faz a cobertura econômica há 50 anos e atualmente possui o jornal eletrônico GGN, acredita que a financeirização é o principal “pecado” da economia contemporânea. “Existe uma cultura da financeirização, que drena todo o lucro para o mercado financeiro. E o mercado não recicla na forma de novas indústrias. É a acumulação de um capital que vai para fora do país, que enriquece pessoas, mas não aumenta a capacidade produtiva do país”, comenta.
O presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Isaac Sidney, concorda com a pertinência do debate colocado por Francisco e cita que, em todo o mundo, instituições financeiras têm adotado medidas para dar respostas. “Temos o compromisso dos bancos com as pessoas vulneráveis (compromissos voluntários de autorregulação, guia de boas práticas, matriz para gerenciamento das vulnerabilidades dos consumidores — idade, letramento, endividamento — e desenvolvimentos de produtos específicos para suas necessidades, ações de educação financeira e repactuação de dívidas”, cita Sidney.
Ele também destaca a atuação dos bancos na agenda socioambiental, na chamada agenda ESG. “Há o direcionamento de recursos para projetos e iniciativas com impacto social e ambiental positivos, em temas como diversidade, inclusão, populações vulneráveis.”
Impactos no Vaticano
Como chefe do Estado do Vaticano, o papa buscou fazer, discretamente, reformas estruturais. Em junho de 2013, apenas três meses após sua eleição, Francisco nomeou uma comissão independente para reformar o Instituto para as Obras de Religião (IOR), mais conhecido como banco do Vaticano, historicamente envolvido em escândalos financeiros. Entre os cinco membros da comissão estava uma mulher, a jurista Mary Ann Glendon, o que em si já sinaliza uma inovação de Francisco. Um ano antes da criação dessa comissão, o banqueiro Éttore Tedeschi foi afastado do cargo de presidente do banco por causa de uma investigação de lavagem de dinheiro.
Graças às ações do papa foram criados órgãos de controle, as contas suspeitas foram fechadas e novas regras trouxeram maior transparência para a atuação do banco. Em janeiro de 2021 o ex-presidente do IOR, Angelo Caloia, foi condenado pelo Tribunal do Vaticano por lavagem de dinheiro e malversação de fundos.
Também em 2013, em uma carta apostólica em forma de “Motu Proprio” — dirigida especificamente ao Estado do Vaticano — o papa determinou medidas de “combate à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e à proliferação de armas de destruição em massa”, publicada ainda em 2013.
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